sábado, 31 de outubro de 2009

caracas



Caracas, no lo creo, Virgínia Rodrigues amanhã e segunda no Sesc Pinheiros e a gente nem sabia! Disco novo, e olha o nome: recomeço. Putz grila, putz grila. Ela me lembra janeiro, Bahia, uma dor que se foi. A casa de uma pessoa muito especial, sauna quente, vidro embaçado, um laço, ventilador no teto. A gente deu de cara com a Virgínia no Tom do Sabor, em Salvador, e eu tirei uma foto com ela, que se perdeu, que se dane. Depois o cd não saiu do carro e então Sol Negro resolveu ficar em Piedade. Morou lá umas boas semanas e um dia, quando não havia nem esperança nem preocupação de recuperá-lo, estava em cima da minha cama, junto com um bilhete: "Obrigada". Não me canso de escutar a música dessa maravilhosa, é mais funda que poço de Passo Fundo, é um campo de girassóis, é um quarto branco, é o vestido florido que a amiga me deu, e não tem nada de mulherzinha.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

banca do ceagesp


Estava quente, pus os óculos escuros tortos como os do Mary e perguntei para o homem que passava onde podia encontrar frutas. Ele quis saber o que eu queria e rapidamente indicou um lugar, mas foi só na hora do tchau, obrigada, moço, que sorriu e disse: Ó, diz que você falou com o tal, e te garanto que você vai encontrar de todos os tipos e por preço bom. Todos, então já é época mesmo? Já é época, menina! Adoro fazer as perguntas certas para as pessoas certas, é por causa dessas bobagens que eu amo a vida. Voltei suando carregando caixa, tentando me equilibrar no salto alto. Entrei no carro, apertei a bichinha e chupei todo o suco, como eu fazia em alguma época que eu nem sei qual.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

não pinte esse rosto


"Eu não estudei, sou analfabeta. Hoje você vê as pessoas tudo estudando. Mas parece que andam mais tristinhas, não é?".

Marina, uma mulher que certamente se encaixa na definição do Natanael: vibradora. Sabe fincar o pé.

Às vezes, antes de dormir, gosto de pensar em Marina.

Me emprestou sua cama, seu banheiro, a proteção de seu altar
Me mostrou que há motivos para continuar acreditando
na gentileza & delicadeza
Só queria me receber bem, não tinha nenhuma outra intenção.
Deixou que eu dormisse em sua cama, não sei onde dormiu
tarde da noite ligou o fogão, cozinhou pinhões e descascou muito mais do que aguentaríamos comer
acordou cedo para fazer o café
acha que bois são bravos
o velho sítio do pai tem 1000 pés da minha fruta preferida
me chamou de sua família
Se tivesse que escolher uma palavra, escolheria alegria
Até hoje, antes de dormir, vejo Marina com sua camiseta cor-de-rosa andando apressada na cozinha, nem 6 horas da manhã
"Bom di! Pode deixar, vai lá olhar a natureza"

Foto: Alex Silva

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

e o motorista roqueiro disse


"O lugar onde as nuvens se encostam para descansar mansamente"

Puxa, obrigada, Mauro.

Eu quero ir para esse lugar.

O melhor de tudo é que ele existe.

Foto: Ryan McGinley

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

reação em cadeia

E não é que uma nota de 1 real foi parar nas mãos da caçulinha? Quando Bianca mostrou ao pai ele contou que a irmã começara uma coleção das velhas notas. Acontece que a nota que Bianca obteve está em perfeito estado, o que me deixou um pouco confusa. Será que algum saudosista está secretamente produzindo notas de 1 pila? Só sei que me senti a irmã mais respeitada do mundo, aquela nota verdinha inteirona em cima da mesa de cabeceira. Logo eu que só tinha colecionado uma coisa na vida: farelo de borracha. Virou moda uma época. A gente comprava borrachas de várias cores e ficava apagando adoidado, juntando tudo em potinhos vazios de miçanga, poções mágicas. Esperrrdício. É politicamente incorreto, mas tem coisa melhor que desperdiçar?

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

secos e molhados


Ela cacheava o cabelo na frente do espelho com a pomada, as mãos melecadas, cheiro de shampoo barato. Ouviu "menina, você acha que eu tô seca?", virou-se e era para ela. Como assim, seca, moça? Até então a palavra seca era aplicada às barrigas fabricadas das saradas que andam pelada no vestiário do clube. "A senhora não é seca, a senhora está ótima", respondeu, rápida como tarte tatin escorregando da fôrma, e se surpreendeu com o tom da própria voz. "É que as meninas disseram que eu tô seca. Eu como pouco, uma conchinha só de arroz, outra de feijão. Aí me deu um enjôo esses dias, elas perguntaram se eu como à noite, eu não janto. Eu sou assim mesmo, magrinha, mas você acha que eu tô seca?". De jeito nenhum. "Mas olha, uma coisa é certa: é bom se alimentar à noite, viu? Não faz bem deixar de comer", a garota falou, sentindo os sapatos de veludo vermelho agarrando o chão. "Se bem que às vezes", continuou, "também pode ser falta de blush". Pintaram o rosto de peach twist. Foi então que começou a tocar Beatles (tá vindo de onde esse som, da privada?) e a girafa grafitada na porta saiu do box e esticou o pescoço, e todo mundo entendeu o mistério dos buracos no teto do banheiro. Agradecida com a resposta, despediu-se cantando alguma música religiosa, só podia ser, tinha a palavra Deus no meio. E foi gozado que agora é que a menina se tocou - mas que tombo da memória! -, a mulher estava ao lado dela cantando a mesma música o tempo todo, desde o instante em que abriu o frasco de pomada.

Ilustra: Laura Laine

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

borboleta da rosa


"Uma borboleta vistosa veio voando... - Ara, viva, maria-boa-sorte! - o Jiribibe gritou. Alto ela entendesse. Ela era quase a paz".

*essa veio da Rosa Haruco Tane por e-mail, acabei de rasgar a caixa, fresquinha. O trecho está em Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. É o segundo e-mail bonito que recebo logo cedo essa semana, e por isso me sinto profundamente agradecida (e ele ainda assopra, sem saber de nada: rosa, morena rosa).

terça-feira, 13 de outubro de 2009

emblema rubro


"Há buracos nas minhas roupas, há buracos no meu chapéu. Mas não há buracos em mim ― a não ser aqueles já esperados", soldado de A Glória de Um Covarde (1951), filme de John Huston.

Na foto, está segurando a bandeira dos EUA o jovem Henry Fleming (Audie Murphy). Idolatrado pela tropa após uma batalha, confessa ao colega ter fugido como um coelho assustado no primeiro embate. "Eu também, assim como metade dos homens", surpreende-o o colega. "Rapaz, esse negócio de confessar faz um bem. Digo, para a alma", conclui Fleming.

A Glória de Um Covarde, cujos bastidores está no livro Filme, de Lillian Ross (considerado base do new journalism), é inspirado na obra Emblema Rubro da Coragem, de Stephen Crane.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

que delícia

Começa a aula de flamenco com 15 minutos de atraso. Mais uma japonesa na classe, magrinha, bermuda da Puma, pé menor que 35 (dá para ver que os sapatos sobram no calcanhar). Ela não conhece Mieko, caiu na escola por acaso, e as duas começam a falar japonês e dão risadas como a da mulher do Daigo de A Partida (o melhor filme do ano até agora). A professora, um mulherão pernudo que pisa forte no chão com sapatos vermelhos, veste a saia, prende o cabelo dourado com um elástico de flor e liga o som. É a voz rouca de um espanhol que, depois de algumas aulas, já começa a soar familiar, um parente ainda distante.
Então uma das alunas corta o silêncio, interrompendo o alongamento de pescoço.
― Eu queria levar esse homem para casa.
E a professora responde:
― Só você, Antonia.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

samuca


Estava usando bigode, coisa de um mês pra cá. Cochilava no banco do carro com invejável imobilidade, como um passarinho deve dormir em Bonito. Cutuquei-o sem cerimônia, acorda, Samuca, acorda. Acordou e me abraçou forte, com sorriso de criança. Nas horas em que seu mau-humor me irritava muito e eu tinha vontade de ser malcriada, eu lembrava do sorriso de criança e pensava nem que quisesse, nem que quisesse podia ser má pessoa. Afinal de contas, ele é um Samuca, Samucas sempre são pessoas do mais fino trato. "Tá de bigode, hein?". Ontem Samuca me contou frustrado que, há semanas, assim que me deixou em casa e virou a esquina, sentiu alguma coisa espatifar no porta-malas. Era a cachaça que compramos em Guararema. Nós passamos quase 24 horas por dia durante 10 dias dentro do mesmo carro, desviando de bambuzal atrás de bambuzal. "Tão longe para voltar tudo amanhã? Não faz sentido", ele argumentava. Eu dizia não mesmo, não faz, mas a gente vai. Acho que ele me matou algumas vezes. Na última noite, nos demos ao luxo de comer quanto quiséssemos num bar carioca muito ruim, éramos um trio. Pedimos torresmo, tava queimado. Samuca olhou feio para o arroz piamontese e quando levou a primeira garfada de carne à boca, chiou: "Esse molho madeira...não podia ter vindo sem?". Ficamos os três rindo, não é possível que ele tá reclamando, todos os mal entendidos pulverizados, derretendo mais que chope vagabundo.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

perto do osso a carne é mais gostosa


sossegue coração
ainda não é agora
a confusão prossegue
sonhos a fora

calma calma
logo mais a gente goza
perto do osso
a carne é mais gostosa

*poema de Paulo Leminski, que ganhou uma linda mostra no Itaú Cultural, Ocupação Paulo Leminski: Vinte Anos em Outras Esferas, organizada pelo Pinduca. De hoje até 8/11