quarta-feira, 31 de março de 2010

Eve maria


E sem saber de nada eu fotografei essa placa. Queria registrar que estava perto do Cariri, só porque eu adoro a Lourdes Hernández. Na véspera da partida, décimo nono dia no Ceará, decido mudar o roteiro e seguir para Icaraí de Amontada, mais uma cidade com nome esquisito encantador de serpentes.

Chego lá às 17 hs, quando a maré está cheia e o sol se pondo. Quero consertar de qualquer jeito a bonequinha que ganhei de presente, paro no primeiro mercado e uma garota simpática e habilidosa cola com Super Bonder a cabeça da boneca. Nem liga que o dedo ficou grudento. Me dá minha minilata de coca-cola, abre um sorriso largo e diz: “Eu adoro morar aqui, daqui eu não saio”. Parecia que eu tinha voltado para Cordisburgo.

Na manhã seguinte, o bugueiro Eve foi me buscar às 7hs para subir comigo nas dunas e me mostrar o rio Aracatiaçu. Lá, você deita com a barriga para cima e os braços abertos e se deixa levar pela correnteza. Eu fui, e fui, até que ouvi o Eve gritando: “Você ainda consegue pisar na areia?”. Não. “Então nada e volta!”.

O passeio continuou pela Barra das Moitas, quando Eve advertiu, com cautela de padre: “Sabe a rivalidade do Palmeiras e do Corinthians? Então, quem mora em Icaraí não se dá com quem mora nas Moitas, é coisa séria, já teve morte. Por exemplo, os rapazes de Icaraí podem casar com as moças das Moitas, mas pergunta se um homem das Moitas se enlaça com uma moça de Icaraí?”. Bom, há exceções. Eve está entre a cruz e a espada, como ele define. É filho de pai das Moitas, mãe de Icaraí.

Apontou os cinco tipos de mangue que margeiam o rio, me deu uma semente do vermelho para eu plantar em Ibiúna. Uma vez por ano, ele passa com um trator recolhendo o lixo de Fortaleza que via mar vai parar em Icaraí e Moitas, esse peixe das duas praias. Só falta implorar para a prefeitura por uma ajuda de alguns contos. Na vizinha Almofala tem uma igreja construída em 1716 pela Princesa Isabel que ficou anos soterrada e foi reerguida, diz Eve. Jericoacoara é uma ilusão, lá eu me sinto na Europa, diz Eve. Em Patos tem uns casarões portugueses antigos abandonados e um restaurante chamado João dos Patos que serve buzos fenomenais. E sabe o Miguel? Organiza noitadas nas dunas, o turista liga e diz “eu quero amanhã”, ele leva o pessoal para uma casinha de barro e mangue, serve caipirinha à vontade em copos feitos de coco e lagosta fresca, à luz do que a gente chama de eletriciquenga, diz Eve.

Em Icaraí de Amontada (ou Icaraizinho, para os turistas, para os nativos jamais) ainda tem bois puxando charretes com sacos cheios de peixes, tem pau-de-arara fazendo o percurso diário de 50 km Icaraí de Amontada-Amontada, para o povo conseguir pagar as contas em dia.

Eu peço para o Eve parar o bugue, que está com a buzina solta e cisma em disparar logo quando a gente cruza com uma pessoa. O Eve disfarça e acena, como se tivesse sido de propósito, e depois briga com a buzina. A cena se repete como cortes de um filme do Godard. Pare para que eu possa tomar o último banho de mar. Levo conchas, pedras, a imagem de um siri vermelho e azul e tudo o que se pode querer levar de uma viagem em que se guerreou como os jegues nas dunas do Ceará.

terça-feira, 16 de março de 2010

respiro



Sinto saudade de escrever, mas no hay tiempo. Vou contar rápido então uma coisa gostosa. Lá em Baturité, vizinha de Guaramiranga, cidade conhecida como a Suíça do Ceará (sim, lá faz frio e eu usei no pescoço uma canga na falta de um cachecol, anteontem). Pois em Baturité há um mosteiro construído pelos jesuítas em 1922. Recebem religiosos o ano todo, sobrevivem com as doações de R$ 1 de cada visitante, têm uma fonte com peixes egípcios trazidos por algum poderoso no passado. Dizem que é no mosteiro que está a primeira piscina olímpica do Ceará. No último andar tem essa janela azul, como eu amo esse azul, e fica sempre fechada de propósito - é para você abrir e sentir o vento que tem a força de todo o mar do Nordeste. Depois feche, obrigada (e, de preferência, deixe aberta).

segunda-feira, 8 de março de 2010

ou eu sou louca?


Pareciam gringas, são alemãs, decretei. Mas aí, entre um e outro gole de café, eu ouvia umas exclamações em português. “Assim não dá mesmo”; “Conversa com ela”. Mudei de ideia, são brasileiras, nunca tinha reparado que quando se fala português com pressa fica parecendo alemão. Que língua libidinosa, que nada. Dou mais um gole no café. Não, espera, não é possível, isso não é português. Encaro a mais falante, loira, cabelos cacheados curtos. Ela me encara de volta. Pago a conta encafifada, que coisa foi essa? Pergunto baixinho para a mulher do caixa: “Aquelas mulheres...elas estão misturando português e alemão, ou eu sou louca?”. Porque acho tudo perfeitamente possível, posso andar por aí e pisar sem querer em Gregor Samsa. “Estão, sim, quando chegaram fizeram o pedido em português e se viraram e na mesma hora começaram a falar alemão”, responde a mulher. Abro a porta me sentindo a Princess Lea com meu cinto brega novo, e outra funcionária me aborda. “Desculpe a indiscrição, mas tem uma etiqueta no seu vestido”. Senti uma espécie de alívio, livre do aflitivo e dramático contato com a normalidade.

quinta-feira, 4 de março de 2010

bregança paulista


Certos momentos ficam grudados na gente como cola Super Bonder. O segurança já não me impede mais e entro na lanchonete totalmente zureta, peço uma porção de linguiça e é gigante e um homem gordinho briaco ao lado não para de me olhar e fala alto com os amigos: "Será que ela vai aguentar?". Fiquei duas horas sentada na sarjeta em frente ao Estádio do Bragantino esperando a Lanchonete do Rosário abrir. "Ô, garçom, você não trouxe pão para a menina...". Eu olho de soslaio e abro um sorrisinho, agradeço. Ele se incomoda porque estou em pé. "Garçom, arruma um banco para ela!". Sento. Não, gordinho, você não vai conseguir me irritar, eu tô com a bunda quadrada e com mais sono que urso um dia antes de hibernar. "Servido, amigo?", ofereço. Diz que não com a cabeça, os compadres dão risada, depois acaba aceitando. Linguiça boa pra cacete, sabia que tava de cobiça pro meu lado. Deixo mais da metade da porção no balcão e vou embora para a Serrinha. Dois pastores alemães me aguardam na porta do quarto, e eu tenho medo do homem do quadro renascentista em cima da minha cama. Mas amanhã vai ter pão de queijo quentinho no café da manhã.

terça-feira, 2 de março de 2010

deliciosas esquisitices


Ele, por exemplo. É preciso mais de uma mão para concluir a lista de coisas que não gosta de comer. Listazinha nada óbvia, esqueça jiló & similares, jiló ele adora. Muitas vezes ela arregalou os olhos e tapou a boca com as mãos. "Inacreditável!". Não lhe revelou seus compassos com a rapidez de um salto em um trampolim acrobático. A lista foi sendo desanuviada pouco a pouco, em mergulhos, camisolinha branca pendurada no varal (ele comeu muito chèvre até confessar que não encarava o queijo, ó mundo cremoso do amor!).

Ilustra: Shira Shela, dica do blog 100 mililitros.