quarta-feira, 29 de setembro de 2010

cartela de sonhos


Hoje eu fui para Buenos Aires passar uma semana assistindo aulas em uma escola pública. As pessoas não entendiam por que eu tinha ido lá, afinal já era formada, e havia boas escolas particulares em Buenos Aires. Mas eu me sentia tão bem sentada naquela sala, com aqueles alunos. Por quê só uma semana?”. “Porque não tenho dinheiro para ficar mais”. O único problema era a localização da escola. Ficava num canto escondido, longe do alcance das linhas de ônibus. Eu quase fui atropelada enquanto atravessava uma avenida em que as duas vias iam para a mesma direção. O guarda gritou: “Pare, pare!”, eu fiquei meio envergonhada, mas fui caminhando entre os carros e cheguei do lado de lá.

Ilustra: Leão de Friedensreich Hundertwasser

"eu hoje acordei pensando
num sonho que eu tive à noite
sentei-me na cama para pensar
no sonho que tive
no sonho que tive

sonhei que entrei no quintal do vizinho e plantei uma flor
no dia seguinte ele estava sorrindo
dizendo que a primavera chegou"


Roberto Carlos

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Y...


Ilustração: Julieta Arroquy

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

em tempos de primavera


Eu e a Rê cruzamos com essas mudas largadas numa calçada de Pinheiros. Fiquei fascinada. Árvores que vieram prontas. Serão plantadas e ficarão décadas ali, alguém um dia vai se curvar debaixo delas para aproveitar sua sombra ou fumar um cigarro. Tudo me pareceu tão simples.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

as notas que eu aprendi


Tia Arlete era miúda, elegante, tinha cabelos brancos macios, corte joãozinho e uma boca igual a da Renata Sorrah. Eu secretamente ria puxando os dois cantos da minha boca, imitando a dela, em frente ao espelho.

Morava num sobrado nos Jardins, numa curva perto da Igreja São José. Eu a visitava uma ou duas vezes por semana, quando sentávamos no velho piano marrom com as teclas amareladas e juntas tocávamos do-ré-mi-fá.

Era uma sala escura, possivelmente vinho, com móveis muito antigos. O marido da tia Arlete andava em uma cadeira de rodas e eu tinha medo dele. De vez em quando ele aparecia durante a aula, ou chamava por ela lá da sala onde eu nunca entrei.

Ela me olhava, emocionada, no meio de alguma música e dizia: "Veja como eu fiquei arrepiada...", apontando os pêlos do braço. Só que eu não sabia o que era estar arrepiada, então concluía que ela gostava de mim.

Gostava tanto que me chamava para participar de recitais em que só reunia seus alunos adultos. Eu chegava toda arrumadinha, o cabelo lambido de gel preso em um rabo de cavalo, e a tia Arlete fazia questão de dizer, em voz alta: "Pessoal, essa aqui é a Giovanna". Eu comia muito bis.

Era uma delícia tocar piano. Ela me deixava seguir por onde eu quisesse, ensinava com ternura, sabia que o estímulo mora numa casinha de sapê e é assustadiço como gato recém-nascido. Aos domingos, na casa da nonna, a primeira coisa a fazer era abrir seu piano envernizado, bem diferente do da tia Arlete, e tocar "tãnã-tãtã-tãnã-tãtã-tãnã-to-non-tãnã-to-non...".

Quando chegou a hora de aprender as notas musicais, me irritei com o piano. Não sabia desenhá-las, tia Arlete me fazia refazer uma dezena de vezes aquela maldita clave de sol (que nunca saía perfeita). Me irritavam até os nomes, sustenido, dó-maior. Para mim, números e símbolos não tinham nada a ver com música. Não queria aprender.

Devo ter enchido tanto minha mãe que um dia ela cedeu: certo, não quer mais, largue as aulas de piano.

Não tive coragem de ligar para a tia Arlete e pedir desculpa. Eu sabia que era importante para ela acreditar que eu pudesse ser uma pianista, embora, na verdade, eu não tivesse talento. Nem mesmo dedo fino.

Um tempo depois, virou moda tocar teclado. As amigas tinham teclados em casa, eu mesma acabei ganhando um, mas só servia para apertar o botão azul que fazia tocar Happy Birthday. Eu achava que o teclado era um sub-piano e, em minha maledicência infantil, julgava minhas amigas pobres coitadas que não conheciam a verdadeira música.

Durante anos, passei em frente à sua casa todos os dias - estava no caminho entre a minha casa e a escola. Na verdade, até hoje passo por ali, mas agora não tem mais o sobradinho. Ele foi engolido junto com uma porção de outros e virou mais uma mansão neoclássica.

Foto: Amarynth Sichel, via flickr

o lobo


Estávamos no meio do mato, sentados de perna-de-índio em uma tenda. Fazia muito calor porque dentro dela havia um buraco e dentro desse buraco eram colocadas pedras quentes. Retiradas incandescentes da fogueira em frente à tenda, brilhantes como olharzinho de criança. Uma mulher derramava um balde cheio de água com ervas por cima das pedras, então dentro da tenda formava-se uma espécie de sauna muito cheirosa. Por que aquelas pessoas estavam presas ali? Todas cantavam muito alto e pareciam felizes, embora às vezes chorassem. Foi quando de repente se fez um silêncio digno da cor branca e, estando a porta da tenda semi-aberta, se ouviu um garotinho lá fora dizendo justamente o que a mulher precisava ouvir: "Eu não tenho medo do lobo, sabe por quê? Porque ele é desse tamaninho aqui, ó". O lobo, menina morena da pele preta, é do tamanho que a gente quiser.

Foto: mademoiselle Piuí

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

encosta aqui


Foto: Tavi Williams, do ótimo blog Style Rookie, uma dica de @Luiz_Horta

terça-feira, 14 de setembro de 2010

és-não-és


Quando você mete os dedos na bola pesada, que segue firme pela pista de boliche em direção aos pinos, mas ela muda de curso e corre pela lateral esquerda. Quando o pára-quedas abre e incha no meio do parque, só que falta vento e ele murcha. Quando a criança pedala pela primeira vez a bicicleta sem rodinha e parece que nunca mais vai cair, mas cai. Quando o bolo está no ponto, cheiroso e lindo, e de repente queima. Quando depois de duas ou três apontadas o lápis está afiado, e a ponta quebra na derradeira rodadinha. Quando a porta do metrô fecha no último segundo, quando não tem mais manteiga e ainda tem pão quente e tem fome, quando a vendedora acha um tamanco de madeira 37, mas não é preto, é creme.
Vinicius e Toquinho deveriam cantar assim: "O futuro do pretérito é uma astronave que tentamos pilotar...".

Foto: Nilton Fukuda

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

comer, rezar e amar


Não cresci comendo comida feita pelas mãos de pai e de mãe. Nunca vi minha mãe tirar um bolo do forno ou meu pai picar uma cebola. Mas isso não me impediu de colecionar inúmeras memórias amorosas à mesa: a banana com açúcar que o meu pai preparava pra gente depois do almoço, a limonada fresca, o pão francês com peito de peru que minha mãe trazia da padaria para o lanche da tarde nos fins de semana. Um dia, quando trabalhava no caderno de gastronomia de um jornal, entrei numa crise dessas de 3 minutos por não ter pais cozinheiros, mas minha prima disse: “Você tá de brincadeira? Vocês todos lá na sua casa têm uma relação muito forte com comida”. É verdade. Aí ele apareceu, ele que vem de uma família de cozinheiros espetaculares, mulheres que transformam rabada no prato mais chique do mundo, homens que grelham cordeiro em uma churrasqueira improvisada deixando a carne mais crocante e mais suculenta que muitos bistrôs de São Paulo. Ele não congela nem requenta coisa alguma, tem um paladar tão apurado que é capaz de adivinhar quanto tempo uma carne ficou congelada na primeira garfada. Sabe escolher berinjelas. Outro dia, eu trouxe uma jaca mole do supermercado e, depois que eu chupei a fruta (pela qual tenho adoração), ele cozinhou as sementes – ficam macias como batatas, mas amendoadas como castanhas portuguesas. Comemos sem acompanhamentos, de pé, na cozinha. Ele faz uma simples ervilha torta frita parecer um diabo de um prato sofisticado. Cresceu sem saber o que era uma lasanha pré-pronta, tomando sopa pelando de broto de abóbora feita com maestria pela mãe. Viciou em comida fresca. Por isso, lá em casa, no congelador só entra sorvete. Vejo-o virando os camarões na frigideira, abrindo as janelas para o cheiro de manteiga e alho não se espalhar pela casa, monitorando as panelas todas, e lembro de esguelha de uma frase da M.F.K. Fisher sobre restaurantes, em Um Alfabeto para Gourmets. Me marcou justamente porque, na época, me soou estranha. Algo a respeito do verdadeiro sofrimento que era ter de comer fora de casa.

escudo


Quando um gesto indelicado me incomoda, eu faço um esforço para pensar em quantas pessoas e em quantas coisas delicadas existem por aí. Que há muito mais gente legal e coisa legal do que gente chata e coisa chata. A borracha em forma de coração que cobre o ralo do banheiro, os ovos fritos com pimenta do reino de manhã, o chão da Marginal Pinheiros manchado de amoras, o livro que ensina crianças a fazer origamis, a moça do banheiro que sempre fala bom dia e às vezes vem com flores no cabelo, a orquídea da tia e a alegria da menina dele ao reconhecer a orquídea, a borboleta dourada que se deslocou sozinha da tiara e virou pingente de colar, a cantora Stacey Kent rindo de si mesma no palco, o e-mail feliz da irmã contando que vai passear na região dos lagos chilenos. Para cada indelicadeza existem 50 mil delicadezas. É o meu míssil Exocet.

Foto: Vivi Favery