sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Carnaval de helicópteros


Há três anos, Gilmar Rodrigues fica oito horas por dia em cima de um heliponto na Marginal Tietê, a principal via expressa da cidade de São Paulo. Seu trabalho é observar, com um binóculo, o fluxo de veículos no trecho entre a ponte Casa Verde e a ponte Júlio de Mesquita Neto. Os apenas 4 km de distância seriam atravessados normalmente em sete minutos, não fosse o fato de que nesta cidade de 20 milhões de habitantes circulam sete milhões de veículos. Motivo pelo qual a CET (Companhia de Engenharia do Tráfego) posicionou 34 “Gilmares” em helipontos espalhados por toda a metrópole, a partir de onde se tem uma visão privilegiada da malha urbana paulistana. Extraoficialmente, porém, Gilmar acaba controlando outro trânsito – o dos ares. 

“O número de helicópteros em São Paulo aumentou muito, às vezes vejo oito voando ao mesmo tempo. O país cresceu e o trânsito é um caos, mesmo com as medidas que estão sempre sendo tomadas”, diz Gilmar, os olhos parafusados no binóculo, que aponta para o céu e não para o chão. Gilmar conhece os helicópteros de todas as emissoras de TV que passam por ali, de que cores são, seus horários e suas rotas. Todo dia eles fazem tudo sempre igual, como na música Cotidiano, de Chico Buarque. Ainda assim, Gilmar não se cansa. Orgulhoso, repete mais de uma vez que um monte de gente inveja seu trabalho de vigia nas alturas.

São Paulo é a maior cidade brasileira e está no ranking mundial das dez mais. Tem um jeito muito particular de lidar com problemas indissociáveis às supermetrópoles, como o vigoroso trânsito de automóveis. Graças a um numeroso grupo de empresários jet setters para quem “se não dá para fazer duas coisas ao mesmo tempo, tem de dar”, São Paulo deixou para trás Nova York e Tóquio e hoje é a cidade com a maior frota urbana de helicópteros do mundo. 


Helipark, shopping center dos helicópteros, em Carapicuíba


Vista a partir do hotel Tivoli






Em dez anos, a quantidade de helicópteros no país aumentou em 51,7%, sendo que o boom foi em entre 2007 e 2008. Hoje, são 1.720 helicópteros, 400 deles rondando diariamente o céu de São Paulo, com a opção de pousar em 188 diferentes pontos – o número é alto mesmo se comparado ao das cidades com frotas similares a de São Paulo. Isso porque a legislação brasileira é mais frouxa em relação ao assunto. Diferentemente de países como a França (em que não se pode sobrevoar sobre a área urbana) e Reino Unido (que estabelece uma altura mínima de 300 metros), no Brasil os helicópteros podem voar livremente, baixo (a 150 metros do chão) e com pouca restrição de horário. 

Há três anos, como praticamente não havia imbróglios, o número de helipontos era ainda maior. Houve uma queda significativa em 2009, quando o prefeito Gilberto Kassab sancionou uma lei estipulando qual deveria ser a distância mínima entre os helipontos, o limite de decibéis emitidos pelas aeronaves e o horário de circulação para helicópteros privados. A iniciativa foi recebida com alívio por moradores de áreas comerciais que sofriam com zumbidos simultâneos em horários considerados impróprios.   

Espera-se que numa cidade com o décimo maior PIB do mundo, com alto custo de vida e a característica de ser uma gulosa consumidora de artigos de luxo, o helicóptero seja um meio de locomoção possível. Mas o que se observa agora em São Paulo é que o helicóptero deixou de ser coisa de milionário e tornou-se acessível a outras classes sociais – inclusive a classe média, que no governo Lula (2002-2010) passou a ser composta por 94,9 milhões de pessoas, representando 50,5% da população brasileira.  Em uma clara referência a essa classe social, em meados de março a revista semanal com maior tiragem do país, a Veja, publicou uma reportagem citando uma empresa de helicópteros que faz voos express em zonas menos nobres de São Paulo a R$ 60.









Eles circulam pelos ares 

A administradora Patricia Whitaker, de 28 anos, mora num prédio que não chama a atenção no bairro da Vila Olímpia, zona sul, depende do salário para pagar as contas e já andou de helicóptero três vezes nos últimos dois anos. “Tomei a decisão depois de um réveillon em que fiquei 10 horas na estrada para ir até a praia de Juqueí, no litoral norte de São Paulo. No ano seguinte, o mesmo impasse: eu não queria pegar aquele trânsito nunca mais, mas ia deixar de passar a virada com os amigos?”, conta Patricia. Jogou no Google “empresas  helicóptero São Paulo” e se frustrou ao constatar que o preço da viagem era salgado, mas uma amiga explicou que se ela ligasse direto para o piloto, sairia bem mais em conta. 

“As empresas geralmente orçam um helicóptero mais caro, o Agusta, o Esquilo. Esse piloto de confiança para quem liguei, ele fazia viagens no Robson 44”, diz. Leia-as um dos helicópteros mais vendidos do mundo cujo seguro é um mais caros do mundo (tem pistão, e não turbina). Agusta, Robson, Esquilo e Bell são nomes que Patricia pronuncia com a naturalidade com que elenca os produtos vendidos no e-commerce ao qual é associada, a loja virtual Shoes 4 You. Assim, por R$ 2 mil, em vez de ficar 10 horas no trânsito, em meia hora minutos Patricia chegou a Juqueí. Ficou tão contente com o resultado que repetiu a dose no ano seguinte e um dia pegou um helicóptero para ir do escritório até o aeroporto de onde saem os voos internacionais, em Guarulhos, a 30 km de São Paulo. 

“Algumas pessoas tiram sarro, chamam de ‘princesinha’. Mas eu não sou uma pessoa materialista, tenho poucos luxos, e senti muito orgulho porque andei de helicóptero com o meu dinheiro e não o dos meus pais”, justifica Patricia. Só falta conseguir convencer as amigas a embarcar junto. O Robson 44 leva três passageiros, além do piloto. Se tiver a companhia de duas pessoas, Patricia vai pagar cerca de R$ 650 por uma viagem que, se fizesse de carro sozinha, lhe custaria ao menos R$ 300 (incluindo gasolina e gastos com pedágio).

O empresário Oliver Ilg, de 50 anos, mora em Campinas, a 100 km de São Paulo, e anda de helicóptero esporadicamente por conta da profissão. Proprietário da empresa Sterling Yachts, que vende iates, ele costuma pegar um táxi-aéreo com clientes, de São Paulo para Santos. Como a viagem não é barata e é custeada pela empresa, ele faz uma conta básica para saber se vale a pena. “Um barco de R$ 3,4 milhões, se o cliente visitá-lo a probabilidade de comprar aumenta em 100%. Essa viagem de helicóptero é a diferença entre vender e não vender”, diz Oliver. Aí, ele entra em um modelo Esquilo, quase sempre a partir do Campo de Marte, aeroporto na zona norte tão hype que tem até uma filial de um clássico bar do centro paulistano lá dentro, o Bar Brahma.

Para Oliver, com o “trânsito infernal de São Paulo” só resta ao paulistano duas opções: ter um helicóptero ou uma moto. Em dias e horários mais críticos a cidade, que vive de medidas paliativas como rodízio de veículos e restrições à circulação de caminhões, pode apresentar mais de 200 km de lentidão. Nessas horas, é voar de helicóptero - atravessa-se a cidade, de ponta a ponta, em 12 minutos - ou “costurar” de moto. De fato, o número de motos em São Paulo mais que dobrou de 2001 a 2010, cresceu 118%. 

Apaixonado por “aviação pé de chinelo” – ele tem a miniatura de um helicóptero Vario pendurado no teto de seu quarto – Oliver até andaria mais de helicóptero se pudesse, mas por prazer, não por obrigação como faz seu vizinho. Nunca falou com o sujeito, mas religiosamente escuta um helicóptero decolar do jardim ao lado às 8h30 e pousar de volta às 17h30. Oliver diz que essa prática é comum entre muitos milionários que têm mansões no bairro de Alphaville, em Barueri, perto de Campinas.

'Máquinas compartilhadas'

Usar helicóptero tal como se usa táxi, é uma coisa. Ser dono de um helicóptero é outra. Em média, se gasta 30% do valor do helicóptero para mantê-lo por ano. Deve-se levar em conta o salário do piloto, a manutenção, o mês em que ficará parado por conta da manutenção, o heliporto onde ficará estacionado. "Se você não voa pelo menos de 30 a 40 horas por mês, não justifica ter um helicóptero", ensina Jorge Bitar, piloto e proprietário de uma das principais empresas de táxi aéreo de São Paulo, a Helimarte. 

“A demanda por esse tipo de serviço tem crescido 15% ao ano. Pessoas de todos os perfis que precisam que a gente as faça atravessar a cidade em minutos”, completa Jorge. O serviço é cobrado por hora (R$ 1.500, no helicóptero mais simples) e o valor não muda se você vai ficar cinco minutos ou uma hora inteira na aeronave.  

Para quem não pode (ou não quer) arcar com os custos de uma aeronave sozinho, há a possibilidade de dividir um helicóptero pelo sistema de “guarda compartilhada”. Adquire-se uma cota (por um determinado valor) e paga-se uma mensalidade de cerca de R$ 10 mil para ter direito a algumas horas mensais de voo. O valor costuma incluir a mensalidade do heliporto – o Helicidade, o Helicentro Morumbi e o Helipark, em Carapicuíba, são os principais. Sendo que esse último, nas palavras do piloto Mauro Baccan, é “um 'Playcenter', é onde está a nata dos donos de helicópteros do país”.

Mauro Baccan é o homem que criou aquele que é provavelmente o primeiro e único clube virtual dedicado a usuários de helicóptero no mundo. Nem todos os que “gostam de voar” podem ter uma “máquina”, e às vezes quem as possui gostaria de tirá-la mais vezes do hangar (afinal, o gasto mensal é fixo). O clube Heliclass promove o encontro entre essas pessoas com interesses complementares. Basta fazer login no site e procurar um helicóptero disponível no horário em que se deseja viajar. Um software faz o cruzamento de informações e assim, sem qualquer intervenção humana, agenda-se um voo. 

“Como vai arcar somente com o custo daquele voo, sai cerca de 30% mais barato do que um táxi aéreo”, explica Mauro, em conversa na sala do heliponto do hotel Tivoli. As reservas são feitas virtualmente, mas os associados do Heliclass têm direito a usar as dependências do hotel, que é um dos mais luxuosos da cidade. Para fazer parte? Tem de pertencer a outro clube, o dos “bem-relacionados” – só fica sócio quem é indicado por outro sócio.

O empresário José Silva*, um dos mais ricos e bem-sucedidos do país, tem helicóptero próprio e com ele gasta mensalmente R$ 140 mil (incluindo pilotos). É um modelo Agusta Power que sai do hangar de uma a três vezes por semana. “Não é essencial, mas facilita muito a vida. Na cidade, uso se preciso ir a algum lugar de fácil acesso para helicóptero que vá me custar mais de uma hora de carro. Fora isso, vou para Maresias, para o interior do estado e para o Rio de Janeiro”, conta José. 

O também empresário João Apolinário, dono da Polishop, usa o mesmo Esquilo que comprou há 20 anos para circular entre as lojas de sua rede. “Do meu escritório, em Santo Amaro, até o shopping Aricanduva, na zona leste, demoro 10 minutos de helicóptero contra 1 hora, 1 hora e meia de carro”, exemplifica. Fala da dificuldade em fazer mais de uma reunião por dia, em cantos diferentes da cidade. Coisa que a repórter entende com meias palavras – atravessou 28 km da zona norte até a sul para poder entrevistá-lo. E no trajeto, em todos os sentidos possíveis, só pensava nele, o helicóptero. 
A administradora Patricia Whitaker 

Jorge Bitar, piloto e dono da empresa de táxi aéreo Helimarte, no Campo de Marte 
O empresário Oliver Ilg
O empresário João Apolinário



*Versão em português da reportagem 'Têtes en L'air' publicada em abril deste ano na revista francesa Trois Couleurs. O texto e as fotos são de minha autoria.


*O nome do entrevistado foi alterado a pedido do mesmo


Agradecimentos: Time News

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

as sobras que sobram


Dizem que quando a cerração não te deixa ver os cânions, é a cidade querendo que você volte outra vez.
Foi assim comigo em Cambará do Sul, no Rio Grande do Sul. Tentei ver os cânions Itaimbezinho e Fortaleza duas vezes cada um, o que significa uns 100 km de estrada de terra entre idas e vindas.
A rádio que monitora o Parque Nacional de Aparados da Serra anunciava que o céu estaria limpo nos cânions às 10h. Chegava lá às 10h05 e o segurança dizia "tava aberto mesmo, mas fechou. Aqui é assim mesmo, em um minuto fecha o tempo e muda tudo".
Cerração, neblina, bruma, fog.
Não vi nada, nem um pedaço de cânion, nada mesmo, o que me entristeceu do começo ao fim da viagem. Principalmente por causa das fotos dos turistas que encontrava pelo caminho, ah, as fotos!

Também tive de atravessar duas vezes a Serra do Rio do Rastro, com o coração aos pulos porque essa estrada não merece nunca uma adjetivação inferior a deslumbrante. Ainda assim a melhor descrição que encontrei para explicar aos outros do que se trata é bem provinciana: sabe a estrada que o Bip Bip desce correndo no desenho animado? É por aí.

Estamos falando da região de Aparados da Serra, que abarca o nordeste do Rio Grande do Sul e o sul de Santa Catarina. São as cidades mais frias do Brasil. Num agosto típico, costuma nevar. Neve de verdade, as araucárias ficam branquinhas e as crianças fazem bonecos de neve.

Tive que descer a Serra do Rio do Rastro duas vezes porque o dinheiro acabou em Urubici, na cidade não passava cartão, eu não tinha mais folhas de cheque e não havia caixas eletrônicos nas imediações. Então a solução foi ficar dois dias em Urubici, atravessar a Serra do Rio do Rastro, dirigir até Criciúma, sacar dinheiro, atravessar a Serra do Rio de Rastro e voltar pra Urubici para mais dois dias de trabalho.
Nessa breve parada em Criciúma houve um acidentezinho. Me disseram que no povoado de S. Bento estava a menor igreja do Brasil do Brasil!, eu fui lá ver, e concentrada em procurar a igrejinha que já estava no meu campo de visão caí numa vala. Um buracão. O carro ficou inclinado pra esquerda como um coqueiro entortado pelo vento em Alagoas, só que no meu caso não tinha vento, tinha chuva.
Uns quatro homens pararam pra me ajudar a sair, eu pensava gente mas por que tanto, desci do carro. Entendi. Chovia uma chuva fina e contínua e eu congelei aquela imagem daqueles homens tentando tirar o carro dali de um jeito que me parece fresca até hoje como as maçãs que eu comi em São Joaquim.

Mas ter atravessado a serra duas vezes me deu a sorte de ter repetido o empacotado, doce típico de Bom Jardim da Serra que não se acha em mais lugar nenhum - exceto em uma lojinha na beira da estrada chamada Empório Aparados da Serra duma neta bom-jardinense que copiou a receita da avó, graças a deus. Massa fininha com recheio de queijo serrano muito macio e derretido, por cima de tudo açúcar e canela.
Foi também nesse empório que comprei um dos melhores cremes hidratantes que já tive, feito com mel e vindo do Mato Grosso, "tem gente que passa aqui só pra levar estoque do creme". Era caro, tipo R$ 5 um potinho um pouco maior que um daqueles miúdos Vic VapoRub.

Em São Joaquim, parei no paraíso das maçãs, a loja Sanjo, e comprei uma caixa das melhores que já comi, parecidas com as que recheavam as tortas polonesas que comi durante sete dias seguidos em Varsóvia em 2007. "Pena que você não provou o suco de maçã que a gente mais vende aqui, é uma senhora japonesa que faz e só ela, parece que cozinha a maçã antes". Até hoje penso nesse suco.

Foi uma viagem de divisas: atravessei a ponte pênsil que liga a praia gaúcha de Torres à catarinense Bellatorres, árida e rachera como deve ser uma cidade fronteiriça mexicana; fiquei horas perdida na floresta que liga São Joaquim, em Santa Catarina, a São José dos Ausentes, no Rio Grande do Sul. Lembro de ter parado para pedir informação a uma família do campo que fez um mapa tão naif que entrei no carro com aquele papel e chorei.

Fiz amizade forte com Guilherme, 14 anos, o filho do casal dono de uma pousada rural em São José dos Ausentes, lugar tão misterioso e maravilhoso como o nome sugere.
Guilherme foi meu espelho retrovisor nas estradas de chão de Ausentes. Criticou a desorganização do meu carro, vomitou no meu carro, me disse que eu "não podia deixar de incluir" um museu situado dentro de uma antiga fazenda, cavalgamos juntos até o cânion Monte Negro e entre todas as miniaturas de ovelha que eu trazia na bolsa o espertinho escolheu bem a única ovelha que eu tinha decretado minha. Ficou com a ovelha negra, não é bobo nem nada.
Ainda me conforta pensar no Guilherme.

Olha, não desejo nem que meu pior inimigo pegue a estrada que liga Cambará do Sul a Praia Grande, com pedras tão enormes e pontudas que as ruas de Paraty são asfaltadas perto dessas.

Quando eu cheguei a Bom Jesus, uma mulher me disse "agora você já pode dizer que esteve no cu do mundo". Foi a última parada. Quer dizer, a última foi Vacaria, onde eu inutilmente tentei achar um movelzinho bonito de madeira. Lugar bom de móvel é o Trevo de Santa Clara, perto de Urubici, onde comprei o banco de madeira da nossa sala por R$ 100. A irmã da dona da pousada em que me hospedei tinha uma transportadora e o banco foi enviado à Feira da Madrugada do Brás sem custo, porque despachar no avião é que não daria. E aí pagamos R$ 100 para um carreto transportá-lo do Brás à Vila Madalena.

São essas sobras, esses pedaços desengonçados que sobram da massa do crepe e são imediatamente cortados sem dó, e nunca estão no prato principal, as memórias de maior envergadura da gente.







quarta-feira, 12 de setembro de 2012

provérbios, Itália, minne



Meu pai repete os provérbios italianos que o nonno e a nonna diziam, provavelmente ensinados ao nonno por meu bisavô Giovanni e minha bisavó que só conheço por Noniccia e nem sei como é a grafia disto, e por aí vai. 
Provérbios são um perigo porque são tentativas de condenar exceções, fazer com que as pessoas andem em fila única, criar uma só regra em um mundo em que não há um ser com a mesma impressão digital que outro. Muitos são machistas, preconceituosos, datados e incentivam o servilismo. 
Mas... há outros que afagam, traduzem, orientam. Afinal, tenho com provérbios bastante intimidade, carrego minha cruz: faço o download gratuito e automático deles da mesma maneira que a boca desobediente amortece de desejo quando vejo alcachofras.
É o caso de "você vem atrás" (em dialeto barês é algo como dret mi vine), e significa "vai chegar sua vez", meu amor, você também vai fazer 30 anos e passar noites em claro pensando como é que vai fazer para pagar a prestação da casa. 
É o caso de "faça o bem e durma", "melhor ficar vermelho de uma vez", "nunca fica mais escuro que meia-noite". É o caso de "o não já está dado" - essa eu repito muito, e quase ninguém entende. 
Aí passo na livraria e vejo o livro Mamas Sicilianas, de Giuseppina Torregrossa, leio as duas primeiras linhas e já estou convencida de que vou levar. Era para ser a história das minne sicilianas, cassatas em forma de...seios, ou tetas, a tradução literal de minne. Mas acabou que me levou aos provérbios do sul da Itália de onde eu vim e onde nunca estive.


Ainda faltam 100 páginas, mas por enquanto meu preferido é este:

"Se houvesse, se pudesse, se fosse eram três bobos que andavam pelo mundo"

E aí, pai, o que me diz?


foto: Bellatorres, em Santa Catarina, na divisa litorânea com o Rio Grande do Sul.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

y rodar

Para comemorar o nascimento do yrodar, blog da mais que querida Pó, ou Pauli, como ela é chamada em Toluca de Lerdo, no México.
"O México é o país mais mexicano do mundo", eu ouvi de um cara da mesa vizinha no café
"O México é vanguarda", disse o garoto de 22 anos que fala grego e hebraico
Pra mim, o México é onde está minha irmã
Meu amor me apresentou Cascatinha & Inhana, uma das primeiras duplas sertanejas do Brasil, descendente certa da ranchera de José Alfredo Jiménez, que por sua vez inaugurou o yrodar da Pó. É por isso que Cascatinha & Inhana estão aqui hoje

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

chega de saudade


Hoje eu vi na tv minha casa da r. Antônio José da Silva, 37
Meu pai transformou os VHs com nossos aniversários, batizados & nascimentos em DVD.
Assim, hoje depois de um almoço com um feijão maravilhoso da Ciça, eu, pai, Nico e Bia nos sentamos para assistir a festa de 1 ano da Bia.

A sala com o sofá em L, o bar de mármore, os quadros do Inos que já não são nossos (a maioria ainda é), o jardim e a casinha de boneca que um dia ficou infestada de abelhas, o salãozinho com o sofá desconfortável e o videogame, aquela engenhoca grande que fazia o portão funcionar (sempre quebrava), o corredor onde a Bia revelou que adorava andar de skate. A cozinha, quase chorei quando vi aquelas gavetas beges lá longe, e um pedacinho da copa onde a gente tanto ficava.
Mas, tirando a cozinha, eu não senti saudade dolorida em momento nenhum.

Eu era uma menina de oito anos com cabelo curtinho e roupa descolada, um colete e uma saia cor de jeans e um top preto por baixo. Estava feliz com a Pó, a Manô, a Joana e as gêmeas, o sorriso todo sujo de brigadeiro.

Alguns ali já se foram literalmente: tia Cecília (como era moderna, não?), vovó Carlotinha, tia Maria.
Outros, afetivamente: Joana, Lélia, aquele amiguinho que a Bia adorava e, a gente concluiu, deve ser hoje o maior pulha de que se tem notícia!

Mas foi bom ver que, tempo vai tempo vem, a memória continua intacta, fresca como um suco de cupuaçu na Ilha do Marajó.
E sempre existirão vasinhos com margaridas brancas.

Ah, vai lá: De sonhadora para sonhadora, na minha outra casa, As Meninas de Lá.
As casas, virtuais ou de alvenaria, são um desenho que nunca se apaga, ficam para sempre guardadas em algum lugar do passado.
ou do futuro?
Tudo se repete, afinal.

ilustração: Inos Corradin



quarta-feira, 15 de agosto de 2012

sobre uma florzinha do campo chamada Fabiana


Ando encantada pelas fotos da minha prima Fabiana. 
Ela só tem 12 anos, mas suas fotos têm mais alma que portfólio de muito adulto pós-graduado.
Têm luz própria, têm identidade
Não têm medo.
E, apesar de serem feitas com o filtro da moda, não são insta-victim, não são nada óbvias.

A Fabi nasceu no dia  1º de março de 2000, eu tinha acabado de fazer 14 anos.
É claro que o nascimento de todo primo é uma festa, mas quando a Fabi nasceu eu sentei e escrevi uma carta pra ela, de próprio punho, dando as boas-vindas e contando tudo o que tinha acontecido naquele dia primeiro, coisas banais do tipo "o Palmeiras ganhou do Grêmio".
Depois abri um livrinho que eu costumava consultar, com uns anjos na capa e frases de efeito, mentalizando "o que a vida traz pra Fabiana?". A resposta era de arrepiar, algo como "uma estrela brilhando no firmamento".
Nunca entreguei a carta para a Fabi, está perdida. Já tentei achá-la nas pastas que carregam dezenas de poemas dramáticos escritos por uma garota pisciana e romântica; não achei.
Eu não sei por que mas, meninas de 12 anos, elas me emocionam particularmente. Acho que é porque aos 12 anos eu passei pela maior provação da minha adolescência. Acho que é porque aos 12 anos elas são o que há de mais menina na vida, a essência do que é ser menina, a criancinha já ficou para trás e a mulher ainda está longe.
É bom e é ruim. É inseguro e é seguro. É contido e é do tamanho do mundo.

Eu ando enchendo o saco da Fabi pra ela usar o cabelo ao natural. O cabelo dela é dum tom loiro acinzentado lindo e tem cachos espetaculares. Eu acho que ela deve me achar uma chata quando eu insisto para repicá-los em vez de escová-los, e soltar o rabo de cavalo não só quando está entre familiares, mas sempre. 
Fabi, seu cabelo é o mais bonito da turma, pode apostar!

Mas pode ser que ela cresça e os queira lisos. 
Pode ser que escolha o caminho retilíneo e se transforme em uma excelente advogada (quem acompanha suas instrutivas discussões com a vovó é que o diga)
Pode ser que transforme a fotografia apenas em hobby, a gastronomia idem. 
Não falei que ela é exímia cozinheira mirim e já saiu em reportagem até no caderno Paladar? Em um curso de massas que fez com o tio Gaspar, se não me engano acabou ensinando os grandes a dobrar capelete. 
Seja o que for, ela vai brilhar. 
Não foi a prima, mas o anjo que disse, no dia em que ela nasceu. Se o anjo disse, está dito. 


foto: Fabiana Laloni Gentil




sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Sobre comer fora



O maior prazer de comer fora é ao mesmo tempo seu maior martírio – esperar sentado a comida chegar. Em casa, ninguém puxa a cadeira antes que todas as travessas cheguem à mesa, já reparou? Fica cada um para um lado, atrás daquilo que mais lhe apetece o estômago. O mais ousado vai até o fogão e espera o momento de distração do cozinheiro para surrupiar uma batata do forno. Tem aquele que furta uma lasca de pão envelhecido da cesta e abre a geladeira na esperança de achar uma fatia de presunto perdida no meio de tanta cerveja e coca-cola. E sempre tem um metido a mestre-cuca que toma a liberdade de abrir a panela, experimentar o molho de tomate e pedir que se ponha mais sal.

No restaurante é outra história, é preciso sentar e esperar, o restaurante impõe a nós todos um exercício civilizatório: suportar o magnífico cheiro da comida alheia e disfarçar a inveja dos risinhos felizes diante da lasanha gratinada fumegante que acabou de pousar na mesa vizinha. Mas é a espera, afinal, que abre espaço para diálogos impossíveis de serem travados no meio de uma batalha em casa para conseguir o queijo ralado que está do outro lado da mesa.

É nesses 20 minutos entre o pedido e a chegada do prato que você fica sabendo o que exatamente o seu irmão está fazendo no emprego novo. Que o pai tem tempo de contemplar a filha mulher sem pressa e lembrar de quando ela era só uma menina que fazia cara de fuinha para foto. Que o neto põe a mão no ombro do avô e pergunta “e aí, vô, como está a vida lá em Curitiba?”. Às vezes, a mesa fica em silêncio, e todos se sentem imensamente agradecidos uns aos outros por não precisarem se constranger diante do nada absoluto e especular sobre o clima em São Paulo. 

Como muitos paulistanos, sou filha de pais que nunca cozinharam. Nunca vi minha mãe tirando um bolo do forno ou meu pai picando uma cebola. Por isso muitas das minhas memórias gastronômicas mais afetivas foram vividas em... restaurantes. Nos tempos mais abonados, frequentávamos uma casa italiana nos Jardins, era um salão com paredes cor de salmão e guardanapos de pano. Depois passamos a ir a uma cantina italiana com toalhas quadriculadas nas mesas. No mais chique ou no mais simples, o pedido era sempre o mesmo, pois quem ama comida de verdade não liga para grife: “Por favor, três capeletes ao molho branco. Bastante queijo gratinado. E uma porção de torradas”. Os garçons nem anotavam, apenas diziam “o de sempre, né?”.

Está aí outro privilégio que não se tem em casa – os garçons. Depois de um tempo, sua função principal deixa de ser nos servir e eles se tornam nossos verdadeiros cúmplices. O Calixto, garçom do Genésio, o restaurante com pinta de bar que é o preferido do meu marido, é capaz de trocar o jogo de futebol do telão para que ele possa ver o Santos jogar; incluiu no cardápio a polenta com vôngole que ele inventou de comer um dia; e quando vou lá acompanhada só das amigas, me olha torto e pergunta: “E o João, cadê?”. Se isso não é puro conforto, não sei o que é.


*Texto publicado no recém saído do forno Guia Gastronômico de Cianorte, no Paraná, um projeto da cunhada (e linda) Eliane Medeiros


*foto: eu, Bianca Tucci e Teresinha Laloni, no dia em que a pequenininha comemorou 18 anos. Com almoço na casa da vovó, é claro (e comida de restaurante!).