domingo, 25 de novembro de 2012

Com atraso: o dia em que fui ao Quilombo dos Palmares

Eu via aquelas cabeças de barro nas pousadas chiques de S. Miguel dos Milagres, "é da Dona Irineia, a principal artesã de Alagoas", e como cheiro de bolo aquilo foi entrando em mim. Quando eu descobri que a d. Irineia morava no povoado do Muquém, a 9 km do Quilombo dos Palmares, foi como se alguém tivesse aberto o forno e colocado o bolo quente bem na minha frente. 
Lembro de ter pensado "estou a apenas 70 km do quilombo mais importante do Brasil, e não vou visitá-lo?". 
Como eu viajava a trabalho por um guia de viagens, não bastava a vontade sozinha, tinha que ser vontade precisada (afinal, não deu para conhecer a foz do rio São Francisco na Penedo tão bem-falada por ele; nem a Arapiraca das famosas sandálias de couro à moda cangaceira).
Mas acho que eu e Irineia tínhamos mesmo de nos conhecer porque o verbete do Parque Memorial Quilombo dos Palmares andava bem murchinho, e o chefe concordou que era interessante visitá-lo.

D. Irineia e o anjo cru

Parti de Maceió no Celta alugado rumo à Serra da Barriga. Em União dos Palmares, a cidade que sedia o quilombo, fiquei sabendo que para conhecê-lo teria de atravessar cerca de 10 km de uma estrada íngreme de terra e mal sinalizada. "O guia vai no carro com você". Fomos.
Era maio quase junho de 2010, início da temporada de chuvas nas Alagoas. Tinha muita, muita lama.
Chegando lá, que surpresa boa! Tão bonito e bem-cuidado o quilombo, apesar dos pouquíssimos visitantes naquele dia. Não é à toa, eu penso, que foi o maior e mais combativo quilombo do país: daqui de cima dá para ver perfeitamente qualquer figura que se locomove ao redor deste eixo. A sensação é a de que o quilombo está no único ponto alto de uma imensa planície.
Arrepiei ao me debruçar sobre aquela varanda junto com o guia negro debaixo de uma jaqueira, e sentir que nem tantos anos atrás assim poderia estar debaixo da mesma jaqueira Zumbi. Foi por causa dele que comecei a escrever este post, publicado com bastante atraso: o dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra e feriado, homenageia o dia da morte do líder quilombola. 



 
A artesã, marido e neto

As cabeças de barro são a marca registrada de Irineia

Depois do quilombo, era a vez do Muquém. 
D. Irineia, assim como toda a população do Muquém, é descendente de Zumbi. 
Quando cheguei ao vilarejo ela não estava, tinha passado mal de tontura e sido levada ao pronto-socorro local. 
Esperei. O marido sorridente e os netos pintados de cimento e barro trabalhavam em alguma construção no terreno ao lado da casa. Hoje, vendo as fotos, acho que devia ser um poço. 
Irineia chegou, "não era nada", me abraçou, conversamos bem pouco. Mais me mostrou a família do que os artesanatos. Eu disse que era muito famosa no estado e que suas peças custavam quatro vezes mais fora dali. 
Me encantei por uma Nossa Senhora Negra com manto azul (hoje em Ibiúna) e um anjo de barro que não tinha sido queimado porém quis levá-lo de qualquer jeito. Irineia não mostrou resistência, "pode levar, tá cru mas não quebra". 
As duas asas chegaram quebradas em São Paulo. Mas eu estava sentindo aquela felicidade blindada contra qualquer desastre natural e artificial. Nem liguei. O Jota e o cunhado Jackson, por acaso lá em casa aqueles dias, deram um jeito nelas com Super Bonder, e quem vê o anjo na nossa estante nem repara que ele tem as asas remendadas. As melhores coisas da vida são remendadas.
Netas de Irineia
Essa foto morou na minha geladeira por muito tempo

No povoado do Muquém

Quilombo dos Palmares
Estátua em homenagem ao guerreiro Zumbi





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