quarta-feira, 11 de julho de 2012

processos



"(...) Fico bem mais a vontade com pessoas que sempre estão se construindo (meu Felipe é dessa raça). Gosto mais do processo que do produto. Gosto das afinidades reveladoras, das coisas que acontecem nos caminhos fronteiriços, das traduções improváveis, dos deslizamentos prazenteiros, dos saltos mortais (...)".

*fragmentos dos e-mails que a chef Lourdes Hernández envia, e que devoro sempre com a fome de quem come um pastel.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

o melhor poema do ginásio




Subi no pé de alface 
pra ver meu amor passar
meu amor passou 
e eu desci!
roubaram meu chinelo



*"o melhor poema do ginásio", de Joana Andrade, embora ela não se lembre de ter escrito. Mas Olivia Palito jura de pé junto que foi a amiga. De alguma forma esse poema veio pra mim porque Olivia se lembrou dele quando leu, no Facebook da Joana, uma mensagem dela sobre o João Rural.


*foto: o Guilherme se metendo num mato que parece alface, em São José dos Ausentes, Rio Grande do Sul, janeiro/2011.



domingo, 8 de julho de 2012

100 nome


Tenho feito ligações frequentes para uma ilha que visitei a trabalho em janeiro. Mesmo que tudo tenha sido checado na ocasião, dá uma certa aflição botar lá que o PF do restaurante custa R$ 17 se a gente sabe que as coisas mudam com a rapidez do pulo de um gato. Então acontece de eu ter de ligar. E me espanta como, em quase 100% dos casos, a primeira reação é de antipatia. "Olá, bom dia, é da agência de turismo tal? Com quem falo?" - à pergunta segue-se um silêncio constrangedor, e a pessoa diz o nome a contragosto, como se eu fosse uma espécie de troll da telefonia. Mas a indisposição some rapidinho e o/a camarada subitamente fala com voz de sorriso quando digo o nome da organização que represento.
Hoje de manhã, quando tal comportamento padrão se repetiu, recordei as situações parecidas mais marcantes ao longo da minha ainda curta vida. 
É o tipo de enrascada que você consegue enxergar com clareza quando é freela e não representa ninguém exceto a si mesmo. Fica mais fácil diferenciar o cara que te sorri apenas por que você traz algum tipo de lucro para ele, aquele sorriso erguido por cifras e que, portanto, desaba facilmente na ausência delas, daquele cara que te sorri de verdade. 
Mas uma coisa que eu penso quando reconheço um canalha é que em algum momento ele não deve ser tão canalha, afinal ele tem uma avó. 

Foto: Bar 100 Nome, um bar desinstitucionalizado. Fevereiro de 2012, Itacaré, Bahia.


quinta-feira, 5 de julho de 2012

ele é caipira com orgulho. e eu também

João Rural chegou ao Hyatt e me ligou. 
Eu o vi na cozinha abrindo saco plástico com canivete, na falta de uma faca à vista. "Você não conhece um caipira, Jéssica?". 
Conheci sua Jéssica, "caipira boa demais, monta cavalo, dirige fusca, é atirada. E tem um namorado legal".
João não sabe, e nem o fotógrafo Tiaguinho, mas foi vendo esses dois trabalharem que meu coração se acalmou
João chegou ao Hyatt e me ligou, e nessa hora eu soube: era certo eu estar ali.



A aula

João Rural estacionou seu fusca marrom no Grand Hyatt, desfilou pelo hotel usando chapéu de palha e distribuiu adesivos do movimento “cumê divagarinho”. Aquela figura que destoava das demais já havia iniciado, assim, a aula que daria sobre cozinha caipira. “Eu não ponho aspa em nada que é caipira. Quando você escreve em inglês que fulano é in ou out, você põe aspa?”, pergunta o pesquisador de Paraibuna, cujo trabalho é rodar o Vale do Paraíba de fusca registrando os saberes e legados “dos antigos”. 

A palestra de João Rural foi uma densa e rica reflexão sobre a raiz da gastronomia paulista, que funcionou muito bem porque a plateia, lotada, estava genuinamente interessada no assunto – fato que chamou a atenção do homem, “há 10 anos, se fizesse uma palestra, apareciam dez pessoas”. 

João tocou em questões culturais e históricas, lembrando personagens como Jeca Tatu e Mazzaropi e frisando que a cozinha mineira é filha da paulista; e outras práticas, explicando o jeito certo caipira de fazer arroz-feijão e dessalgar a carne seca. A receita: “Coloca a carne numa panela com bastante sal, um pouco de água e tira do fogo quando começar a aparecer uma espuminha. É reação química, o sal vai para o meio onde tem mais sal. O caipira não sabe explicar por que faz assim, mas ele faz”. A plateia vibra. 

Nos bastidores, a brigada de chefs vibrava era com a formiga içá, “o caviar de Taubaté”, na definição de Monteiro Lobato, que seria servida com uma farofa. “Tem um gosto defumado”, comentava um, sacando o smartphone do bolso; “Onde é que vocês produzem essas formigas?”, questionava outro, para divertimento de Jéssica, o braço-direito de João Rural que no dia atacou de sub-chef. 

João suou para conseguir as formigas, pois as içás são capturadas em outubro e só podem ser comidas fora de época se congeladas. Pagou R$ 100 o quilo. Em um bar, a porção de formigas está saindo por R$ 20. “As pessoas comem içá em dezenas de cidades do Brasil e ainda tem gente que trata o assunto como folclore, e não como um costume social”, João dá seu recado. A julgar pela fila de 20 minutos para trocar uma palavra com ele ao fim da aula, as pessoas estão ouvindo. 

O encontro casual com Ana Rita Suassuna

João não sabia nada sobre Ana Rita nem Ana Rita sobre João. Mas eles se cruzaram no corredor, alguém notou e, sabendo que teriam algo a mais em comum do que o "Paraíba" no nome de suas terras natais, tentamos inutilmente fazer uma apresentação formal. Nenhum dos dois deu bola e eles começaram a conversar. "Você cozinha?", ele quis saber, ela respondeu que não, que era "uma fazedora de comida doméstica, é no lar que a comida é legitimada". João concordou balançando a cabeça e repetindo "é"  mais de uma vez por meio de grunhidos. E contou: "Quando eu vou às casas das pessoas e observo apenas o jeito como se põe a banha de porco na panela eu me sinto privilegiado".João, que antes de ser apresentado à Ana Rita ouvira ela dizer uma frase que terminava com "comida de pobre", engatou uma história, sem explicar por que se lembrara dela: "Você sabe que conheci uma mulher do Vale do Ribeira que fazia pratos com banana e dizia isso, que era 'comida de pobre'.  Eu ouvi e interrompi na hora: comida de pobre, não, é a comida do futuro!". Ana Rita saiu apressada para assistir uma aula e caminhou entortando o pescoço para não perder João de vista, enquanto falava: "Tem um francês aqui no hotel que ontem me disse, quando eu preparei um prato sertanejo, 'como é que uma coisa é tão gostosa e tão simples e não é conhecida?". E assim, sem dizer nada um a outro e dizendo tudo um ao outro, o caipira da gema e a fada madrinha da cozinha sertaneja trombaram no corredor do Hyatt (mas se você perguntar para ela quem é ele ou vice-versa, eles não saberão precisar).

A viagem de fusca

Em 2008, Madonna aterrissou no Grand Hyatt São Paulo em um Mercedes Benz CLS Wagon. Em 2010, Paul McCartney veio a bordo de um portentoso Audi Q7. Em 2012, João Rural chegou de chapéu de palha dirigindo um fusquinha marrom 82. É com ele que o pesquisador percorre o Vale do Paraíba há quatro anos para fazer um trabalho de pesquisa sobre a cozinha caipira que depois será publicado no Guia Nascentes, uma espécie de Guia Quatro Rodas do Vale (daí o selo no fusca). 

Você sabe, fuscas têm apelidos... "Não, o meu não tem, dar nome em fusca é bullying", e dá risada. Antes do fusca-sem-nome, João rodava pela região também com um fusca (78), que agora fica na garagem. É só com um desses que ele consegue desafiar as esburacadas estradas por onde passa. "Eu tenho um fusca e eu viajo mesmo, eu não finjo", diz, com um toque de ironia caipira na voz. 

O percurso de Paraibuna até a porta do Hyatt foi tranquilo e durou 2 horas (ironia caipira?). Deixou o carro com os manobristas, dormiu, apresentou a palestra na manhã seguinte, almoçou, chamou os manobristas e pediu o fusca de volta. "Quarenta reais, senhor", lhe diz o rapaz. "Mas eu sou convidado do evento", explicou João. Não quiseram saber. Era preciso chamar a produção para dizer aos manobristas "sim, este fusca está liberado". Nessas, o fusca já tinha chegado e parou o trânsito na via de acesso ao hotel. Mercedes e Audis desviavam do fusquinha marrom, que o fotógrafo Tiago Queiroz, ali à espreita, clicava sem parar debaixo do sol quente. A produção chegou e liberou. 

João entra no banco do passageiro, pois quem vai dirigindo é a Jéssica, sua assistente. "O João queria dar uma cochilada depois do almoço, mas eu tô com saudade dos meus cavalos. Eu disse 'vamos, João, eu assumo a direção e você cochila". João faz o cumprimento típico do caipira, tirando e recolocando o chapéu na cabeça, e o fusca vai. Em uma de suas portas laterais, o selo "Petrobras". Não é história de caipira: o fusca é, de fato, patrocinado pela Petrobras. 

***Íntegra dos textos publicados originalmente no caderno Paladar, do jornal Estado de S. Paulo, hoje, no especial Paladar - Cozinha do Brasil

***foto: Tiago Queiroz/Agência Estado

***Agradecimentos especiais ao Jota, amor meu, pelo companheirismo, pela delicadeza, pelo risoto de camarão e pelo pronto-socorro.