sexta-feira, 29 de outubro de 2010

um japonês quebrou minhas pernas


Não sou avessa às novas tecnologias – isso vale para comida. Acho ótimo que existam pessoas como Hervé This, Ferran Adrià e Alex Atala, malabaristas cerebrais das panelas e dos tubos de ensaio. Mas essa cozinha, chamada de molecular ou criativa, não me emociona. Lembro de uma caminhada pela rua João Tibiriçá com o editor-chefe da revista americana Saveur, James Oseland. Eu perguntava “gostou desse restaurante, e daquele, e desse?”, ele fazia uma cara blasé e respondia só “gostei”. Mas nenhuma refeição, dizia, tinha sido boa como aquela preparada por sua sogra mineira (e se a resposta viesse mais tarde, possivelmente ganharia o complemento “e pela Neide Rigo”, onde almoçaríamos naquele dia). Noutra tarde, comemos um sorvete de doce de leite com queijo. Uma crítica gastronômica comentou “é bom, mas é muito doce”. E ele: “É muito doce e é muito bom!”. Tivemos conversas incríveis sobre comida & antropologia & família & pimentas. Ele voltou para o Brooklin e eu continuei catando os amendoins no caminho, com cada vez mais certeza: não existe nada mais sublime do que um prato de arroz, feijão e ovo. Eu sou de rapar goiabada do tacho, chupo manga e encho o dente de fiapo no meio da tarde escondida no banheiro da redação, amo o jeito como o fettuccine al dente com molho na medida certa corre até minha boca, acho que não existe cheiro melhor que o de alho refogando na panela e, se pudesse, comeria tapioca recheada de coco e leite condensado o dia inteiro. Até que um japonês chamado Yoshihiro Narisawa quebrou, anteontem, minhas pernas. Começou sua aula no evento da revista Prazeres da Mesa explicando – a chef Mari Hirata ia fazendo a tradução – que em seu país as quatro estações são bem definidas, por isso troca o cardápio todo a cada três meses. No telão, uma foto linda de árvores brancas de neve. A música de consultório de dentista ao fundo, o jeito como ia delicadamente e humildemente explicando seu trabalho, em japonês, eram poesia pura, só faltava moldura para virar um quadro do Goto Sumio. Narisawa se inspira em fotos para criar seus pratos: em uma fogueira com carvões em chamas enxerga um bife suculento todo polvilhado de cinzas de alho poró. Num inverno, trouxe um punhado de terra com algumas raízes para a cozinha e notou que com isso (e apenas isso) podia fazer uma sopa maravilhosa. No evento, tinha muito chef forçando a barra para ser sustentável, dizendo que evita cozinhar a vácuo no thermomix para economizar plástico. Devem ter ruborizado ao ouvir Narisawa. Ou deveriam. Ele realmente se preocupa, e é cada vez mais difícil encontrar pessoas que realmente...qualquer coisa. Narisawa não precisa se apoiar nas muletas da cozinha moderna - as espumas e as gelatinas. Saí daquela sala tonta de alegria, uma sopa de terra pode ser tão emocional como um prato de arroz, feijão e ovo. E como eu estava errada em pensar que podia morrer sem conhecer o Japão.

foto: Talita

terça-feira, 26 de outubro de 2010

um poema de amor


Ontem acidentalmente vi trechos do documentário Born Into This, sobre o Bukowski. Me deixou com vontade de ler coisas dele, e sempre que eu começo a ler coisas dele não paro mais. Num breve intervalo entre aquilo e isso, deu tempo de me embalar nesse love poem.

todas as mulheres
todos os beijos as
diferentes formas que amam e
falam e carecem.
suas orelhas todas elas têm
orelhas e
gargantas e vestidos
e sapatos e
automóveis e ex-
maridos.

na maioria das vezes
as mulheres são muito
quentes elas me lembram
torrada com a manteiga
derretida
nela.

está estampado no
olhar: elas foram
tomadas elas foram
enganadas. eu nunca sei o que
fazer por
elas.

sou
um bom cozinheiro um bom
ouvinte
mas nunca aprendi a
dançar — eu estava ocupado
com coisas maiores.

mas eu apreciei suas variadas
camas
fumando cigarros
olhando para o
teto. não fui nocivo nem
desleal. apenas
um aprendiz.

eu sei que todas têm
pés e descalças elas andam pelo piso enquanto
eu olho suas modestas bundas no
escuro. sei que gostam de mim, algumas até
me amam
mas eu amo muito
poucas.

algumas me dão laranjas e vitaminas;
outras falam mansamente da
infância e pais e
paisagens; algumas são quase
loucas mas nenhuma delas deixa de fazer
sentido; algumas amam
bem, outras nem
tanto; as melhores no sexo nem sempre são as
melhores em outras
coisas; cada uma tem seus limites como eu tenho
limites e nós aprendemos
cada qual
rapidamente.

todas as mulheres todas as
mulheres todos os
quartos
os tapetes as
fotos as
cortinas, é
algo como uma igreja
raramente se ouve
uma risada.

essas orelhas esses
braços esses
cotovelos esses olhos
olhando, o afeto
e a carência eu tenho
aguentado eu tenho
aguentado.


Foto: J.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

bueiro na escadaria que desemboca na travessa tim maia


E no meio do caminho tinha uma escada,
e na escada tinha um bueiro,
e no bueiro tinha uma flor

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

seguimos


Acaba a bateria do celular recém-carregado e o despertador não toca. A cantoria menos intensa dos passarinhos e o barulho mais intenso dos carros não deixam dúvidas: são mais de sete. Desço correndo as escadas do metrô Vila Madalena para chegar a tempo de estar junto dela.
Deixo-o no trabalho e vou para casa. Na porta, descubro que esqueci as chaves. Volto para buscá-las e, no meio do caminho, a água Minalba 200 L que estava no banco traseiro explode e começa a molhar o carro todo descontroladamente. Seguro a garrafa vazando com a mão esquerda para fora da janela, como se fosse um cigarro, e um motoqueiro me olha sem piedade.
E o calor, esse calor no rosto que frita as bochechas, só atrapalha tudo!
Pego a chave, almoço, chego em casa, abro uma coca-cola e sento no sofá em frente ao computador. Vejo o copo tombar em câmera lenta nos fios e cair em cima da mesa, molhando a toalha florida de Curaçao, a mesa de madeira, o tapete bege de Pernambuco.
Procuro diligentemente por uma explicação nos sites de astrologia: a lua está vazia, saturno está causando? Susan Miller?
Recolho da sala o tapete (que eu queria mesmo lavar) e penso que talvez seja melhor esquecer tudo e fazer uma boa limpeza, balde cheio d'água, esfregão, cheiro de banho tomado.
A hera ficou simplesmente deslumbrante no xaxim.
Cresci cercada de mulheres puras.
Não é tão ruim assim comer mamão de sobremesa.
Mesmo trabalhando, passar a tarde em casa com esse vento no rosto, barulho de maritacas comendo mamão lá embaixo, é tudo de bom!
Seguimos?

Ilustração: Kristina, uma indicação da Aninha

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Attraversiamo?


É claro que é um filme apelativo, sem carne nem queijo, sem recheio, com chavões até a borda e frases superficiais de livro panfletário de auto-ajuda. Mas, além de ser uma delícia de assistir, por trás dessa coisa hollywoodiana toda de comer na Itália, rezar na Índia e amar em Bali, o filme tem um efeito terapêutico.

A protagonista, Liz Gilbert (Julia Roberts), quer o que todos nós queremos: encontrar sua paz. Para isso, engrena em uma viagem de um ano, seguindo à risca as previsões de um guru.

Uma das partes que mais gosto é aquela em que ela surta porque não consegue se livrar da angústia de não saber ao certo quem é e o que quer no mundo. Um cara sábio do templo indiano vira pra ela e diz: “Ah, você quer paz? Ninguém consegue a paz assim, só por querer. Tem que gramar muito”. Também adoro quando, na pizzaria napolitana, sua amiga se recusa a comer um pedaço de pura mussarela derretida e Liz se agita: “Eu vou comer, sabe por quê? Porque eu cansei de ter culpa. Cansei de ficar medindo meu corpo no chuveiro. Eu não tenho interesse em ser obesa, mas hoje eu vou comer o que quiser, sem culpa”. Eu também cansei de sentir culpa, uma banana pra culpa!

Em um fim de tarde, o mesmo amigo que aconselhou Liz no templo a leva a uma silenciosa cobertura de um prédio abandonado, e sutilmente ordena: “Só saia daí quando tiver se perdoado”. É bonito o jeito como ela pede perdão para o ex-marido. Acho que a gente se auto-penitencia tanto que nem reconhece mais quando o faz. Muitas angústias são na verdade resultado dessas culpazinhas peroladas que carregamos no pescoço.

Agora, a derradeira cena: depois de conquistar seu tão esperado equilíbrio interior, Liz se apaixona. O que pode ser mais desequilibrante do que estar apaixonado? Ela então recua e, para seu espanto, o guru de Bali discorda: “Mulher, viver o amor sem moderação também faz parte do equilíbrio”.

Como diria o camarada da diagramação do Estadão: “Que delícia!”

so light is her footfall


Uma vez, ela me falou: "Você é a criança. Vi isso muitas vezes no reiki. A jornalista, a mulher decidida e valente não tem nada a ver com esta criança." Sempre que eu olho uma criança perdida no meio dos adultos, eu me sinto em casa. Como essa menina, que estava sentada sozinha na praça de alimentação e eu fotografei com a câmera do celular, sem medo de borrar as unhas recém-pintadas de cor-de-rosa. "Você não pode tirar fotos aqui", me reprimiu a segurança. Ela nem imagina que fez com que eu muito alegremente me sentisse mais criança ainda.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

crônica de hoje


A linguagem oculta na cozinha

Por Nina Horta, na Folha de S. Paulo

Algumas coisas parecem tão fáceis e na verdade não são. Às vezes demoram uma vida para serem assimiladas. Comecei a me interessar por cozinha desde sempre. Primeiro para comer, depois para agradar e um dia encontrei um livro só de receitas e adotei o infeliz como guia. Era o Fanny Farmer, um clássico americano que já passou por tantas transformações que não conheço mais o monstro.
Era só sentar, ler e fazer um cardápio baseado nele. Escrever todos os ingredientes necessários e ir para o mercado. Lá, procurava coisa por coisa que o livro pedira, descia e subia escadas e ia cortando a listinha com Bic, frustrada quando alguma coisa não estava na época ou simplesmente não existia. Fanny Farmer era americana e eu, brasileira da gema, pequeno detalhe.
Atentem, 20 anos depois desse processo, 20 anos depois (experiências, viagens, lembranças, muitos livros), entrei no mercado e tive um insight. Consegui enxergar não a couve sozinha ou o camarão fresco, ou a batata do purê do dia, o A o B o C, mas a soma deles todos. Foi um instante raro. A mesma de quando consegui ler no jornal Casa Gato.
Rasguei a lista da Fannie Farmer. Descobri naquela hora, pasmem, depois de 20 anos de mercado quase diário, que só é possível entender os ingredientes e misturá-los quando fazem parte de um todo.
Uma só laranja não faz verão. É somente uma laranja mais ou menos burra. Agora, se no nosso repertório existe a calda de açúcar ela pode virar um doce e, perto do paio, é refrescante. Muito óbvio ou muito complicado?
Só conseguimos reunir as peças da comida em alguma coisa bem aceitável quando se aprende as técnicas básicas, quando se lê muito (melhor quando se vive muito), quando se tem olho vivo, língua curiosa, quando o erro é o melhor condutor, quando se quebra a cabeça misturando os ingredientes com muita obediência e outras vezes com liberdade total.

Quem se lembra do primeiro semestre da faculdade, quando o sociologês, o filosofês, o antropologês eram um obstáculo desolador, quase impossível de ser resolvido? E dois anos depois, deus-que-nos-perdoe dos jargões tão feios, falávamos felizes em epistemologia, doxa, duração, tergiversar, como se fosse a lista do supermercado?
Ou uma língua como o alemão que se apresenta como muralha e vai-se ver é a mais fácil de todas?
A linguagem oculta da cozinha também pode ser um obstáculo. É preciso estudá-la como estudamos qualquer outra matéria. Claro que alguns terão mais facilidade do que outros, alguns vão parecer que nasceram sabendo, alguns vão desistir e mudar de rumo, tudo igualzinho às outras disciplinas do vestibular. Estudo, experiência, memória, imaginação, abertura, prazer, ritmo, astúcia e a visão da comida como uma língua a se aprender e que devemos interpretar segundo nossas possibilidades e vivências.
E não é maravilhoso que não exista um cozinhês? Grande vantagem. Um bom feijão grosso todo mundo entende. Quase todo mundo.

Foto: Bianca Tucci

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

blue screen


Os comandos pararam de funcionar e a tela subitamente ficou azul, exibindo uma mensagem: “Um problema foi detectado”. É só reiniciar, pensei. Reiniciei e não deu certo. É só desligar, pensei. Desliguei e surgiu a mesma mensagem. O colega ao lado olhou de soslaio e suspirou: “Ai, a tela azul...”. O cabeludo sorridente lá do fundo explicou melhor: “É o que os americanos chamam de The Blue Screen of Death”. Joguei no Google e achei um verbete na Wikipédia confirmando: meu computador morreu. Em outros tempos ficaria desesperada, ou meio chateada, mas dessa vez só liguei no suporte e abri um chamado. E mudei de mesa. Lembrei da frase da Talita: “Se for pra morrer, que a morte seja gostosa, do jeito que der pra ser”. A TV mostra a perseguição surreal a um motorista na zona oeste de São Paulo, e eu penso que essa lua nova em Libra veio forte como um gole de uísque.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

biscoito da sorte


"A liberdade, quando começa a criar raízes, é uma planta de crescimento muito rápido."

Ilustração: Célia Medeiros de Araujo

terça-feira, 5 de outubro de 2010

costa carvalho


Caminhando pelas ruas de Pinheiros, segurando a saia pra não voar, segurando a vontade de parar para comer um brigadeiro ou de simplesmente parar. Na porta de uma das casas sobreviventes no bairro de prédios a la Ruy Ohtake tem uma senhora. De gorro e malha daquelas gostosas que fazem a gente ter vontade de estar na casa da tia Célia em algum dia dos anos 90. Uma das mãos apoiada no portão, a outra solta, o olhar perdido na rua. A cena é tão bonita que quero registrá-la com a câmera do meu celular (e faz tanto tempo que eu não fotografo). "Posso?". Por quê?, ela quer saber. "Ah, eu sou fotógrafa, e queria fazer um retrato da senhora, que está bonita". Não, ela diz. Eu dou um sorriso e concluo, como que para não criar um mal estar: "Não gosta de fotos, né? Tudo bem...". Tudo bem nada, caramba, era só uma foto. Mas, espera, a pessoa tem direito de não querer, certo? Que vergonha ter recebido um "não", será que alguém viu? A cabeça vai à mil, e eu só saí para almoçar uma empadinha no Pirajá. Às vezes parece que a vida toda não passa de uma monólogo, como A Alma Imoral, de Clarice Niskier - só que sem ninguém na plateia.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

minhas lembranças suecas


Junho de 1994 – A seleção brasileira de futebol enfrenta a Suécia em uma ardida semi-final da Copa do Mundo. Romário faz um gol de cabeça para alívio de outras milhões de cabeças da América do Sul.

Julho de 1997 – (1) Estou em um acampamento em Cincinnati, Ohio, EUA, com cerca de 50 crianças do mundo todo. Sinto muita saudade de casa e choro todas as noites agarrada a meu hipopótamo de pelúcia e a um pequeno terço de madeira. No meu quarto tem uma menina sueca cujo apelido é Charlie que parece ter o dobro da minha idade e o dobro da minha altura. Tem sorriso de atriz do seriado teen Seven Eleven. Certa noite, eu ofereço uma Chocolícia que ela come como se nunca tivesse visto antes uma bolacha na vida. Fico muito feliz.

(2) No último dia do acampamento, as crianças trocam entre si roupas típicas de seus países que usaram durante a chamada “noite nacional” – cada grupinho tinha um dia para mostrar aos outros um pouco de sua cultura, e isso significava basicamente preparar alguma comida e botar pra tocar alguma música (os dinamarqueses serviram uma bala horrível e a monitora do grupo passou com um lixão pra todo mundo cuspir fora). Eu e uma menina sueca loira, magra e inexpressiva trocamos nossas roupas, mas ela não me dá a camisa branca que usa por baixo do vestido azul e amarelo. Eu digo que sem isso pego minha roupa de frevo de volta, e destrocamos. Ela fica muito emburrada e eu troco minha roupa por uma muito mais bonita - a da menina norueguesa.

Setembro de 2010 – (1) Vou ver Anna Von Hausswolff tocar teclado na choperia do Sesc Pompeia. A menina, loira branca, está vermelha e tem uma voz de assustar crocodilos e espantar urubus. É das mais potentes que já ouvi. Acaba o show e ela vem ao nosso lado, escoltada por sua dupla de músicos, assistir à próxima apresentação. Tem menos de 1,60 de altura, usa shorts de surfista e, ele tinha razão: é absurdamente linda, carrega nos olhos o sol e a lua.

(2) As gêmeas Miriam e Johanna, do Taxi Taxi!, deixam o público embasbacado no teatro de duas plateias do Sesc Pompeia. Johanna canta com a garganta, o peito, o nariz, as pernas tortas. Sua guitarra Gibson dourada é maravilhosa. A irmã tem um cabelo corajoso, é magrinha e corcunda, eu poderia ficar ouvindo sua voz a noite toda, toca piano e ajuda Johanna a ter auto-confiança através de piscadelas e batidas de pé. Não sei definir a música dessas fadas suecas, só sei que assim como a Stacey Kent elas também conseguem vertiginosamente derreter icebergs (mesmo que não faça mais tanto frio na Escandinávia).

Foto: Anna, por Gary Landström