quinta-feira, 24 de setembro de 2009

100


― Não existem mais notas de R$ 1, você reparou?
― Não estão circulando muito mais, não, mas de vez em quando uma cai na sua mão.
― De jeito nenhum, ahn-ahn, nunca mais vi. Na minha, não. Cê tá mentindo, tá de provocação, cê também nunca mais viu uma verdinha...
No dia seguinte, uma nota de R$ 1 repousa na velha mesa de cabeceira. Abarrotada, rasgada, sem viço, mais leve que a pena do mais fino ganso, quase um papel vegetal. Yes, vou guardar e mostrar para os meus netos como eram as notas de R$ 1, vou enquadrar, é a minha nota! Essa aí na carteira traz mais sorte que US$ 1, que dólar que nada!
Pus na gavetinha.
Poucos dias depois, abro a porta do quarto e lá está ela de novo, na mesinha. Outra nota de R$ 1.
― Você achou outra!
E ontem aconteceu de novo.
― Três! Vou juntar várias, vou ser a maior colecionadora de notas de R$ 1, vou ficar rica! ― a piada acalmou os ânimos abalados por um juiz que não queria encerrar o embate Palmeiras x Cruzeiro.
Guardei as três uma em cima da outra e lembrei da frase que li esses dias, no blog da Noemi.
Que cara bacana é o meu pai!

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

quebra-nozes


Quebrei a geleia, espatifou-se. Olha só o que eu trouxe! Tinha comprado também um saquinho de pão português. Geleia de morango com champanhe, que cuidadosamente escolhi depois de uns 10 minutos examinando a estante do mercado. Laranja, gengibre, marmelo, sítio do picapau amarelo. "Não se preocupe, setembro anda mesmo parado, tudo emperrado, em outubro melhora", eu disse, e imediatamente o pote escorregou da mão. Não foi um tombo escandaloso, foi até elegante, barulhinho contido. Agachei. É um pote de geleia de morango que quebrou ou um coração gelatinoso em cacos? "Agora já era", alguém avisa. Não, ainda dá, e separo a parte que ficou de costas para o chão depois da queda, brilhante como uma goiabada cascão de colher de Miguel Pereira. Num copinho de plástico está o que sobrou da geleia inglesa de morango com champanhe. Eu a experimentei em segredo quando fui ao banheiro lavar as mãos mas, com receio de me machucar, não consegui sentir prazer, cuspi. Vinte minutos depois, senti um caco na língua. Tudo é tão previsível como o céu no primeiro dia de primavera na cidade onde eu nasci.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

drum'n'bass


"Eu ficava encantada com as manhãs, gostaria mesmo que todas as coisas fossem apenas manhã. Era como se, purificado pelo forte sono dos homens, tudo estivesse nascendo novamente. Vinha uma respiração poderosa, inundava o solo, janelas iam se abrindo, a cozinheira varria o ladrilho, junto à porta dos fundos. Então, o que havia de ruim estaria perdoado, recomeçaramos ainda uma vez, pode ser que finalmente acertemos. Em quê? Ah, isso não interessa, é necessário somente que você marche, porque há um caminho a seguir, levando não sei aonde. Acontece que me encontro nele, não pedi para vir, mas aqui estou. A manhã despeja um novo alento, sinto menos funda a tristeza da terra.

As árvores são diáfanas; um manto de névoa cobre o mundo, cada passarinho é uma pequena esperança. Um homem está dormindo. Acabaram-se os sonhos maus, a essa hora ele está maravilhosamente dormindo. Sem perceber, incorpora ao organismo uma substância vital, que lhe dará ânimo na penosa travessia. Os elementos trabalhavam para ele, se harmonizam, o homem acorda. Estira os braços, boceja, uma figura ainda está dançando. O dia é um estupendo poço cheio de flores imprevistas. Uma cor-de-rosa e leve, outra branca; mas surgirão cravos roxos, sarcásticos, acolchoados em fel. O homem não pode prevê-las: levanta-se e começa a viver."

Trecho de A Busca, livro que Maria Julieta Drummond de Andrade, filha do poeta, escreveu aos 17 anos. Teimava em não reeditá-lo. "(...) sentia pudor ao recordar o tom romântico, o transbordamento emocional, a adjetivação exaltada, tão reveladores das dificuldades com que enfrentei a aventura de crescer". Mas aí um de seus filhos pediu para ler o livro. "Emprestei-lhe, com receio, um velho exemplar, que fora dos meus avós. Na manhã seguinte, ele me confessou, comovido: 'Mãe, A Busca sou eu'".

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

esta maçã está verde.


Furtei do blog da Mi, enviei para pessoas queridas (como às vezes faço quando um poema faz cócegas), e aconteceu uma coisa rara: quase que imediatamente todas me responderam, agradecidas. E, em pequenas homenagens que nem imaginam como foram monstruosamente importantes, reproduziram essa quase oração desta Célia-bromélia-amarela-bolo-de-fubá.
Que more aqui também.


"Um dia a gente acorda e percebe que mudou, depois de levar muita porrada e ter os ossos moídos junto aos sonhos.

Um dia a gente acorda e percebe que nem toda mudança precisa ser amarga,
embora o que nos mova quase sempre seja a dor, esta parceira do imprevisto.

Um dia a gente acorda e descobre do lado do avesso um espaço zen, uma espécie de paz interior que nos adula e acaricia,
como se a mãe voltasse a nos pegar no colo.

Neste dia, inexplicavelmente,
decidimos que o melhor a fazer
numa manhã é plantar um girassol
só para ver, dali a um tempo,
sem angústia, dilema ou rejeição,
que a vida dança a dança dos dervixes…
e que a nossa entrega à vida
é um ritual sem hoje nem amanhã.

A felicidade pode ser o ato de movimentar -se
como os girassóis, para lá e para cá,
só pra ver onde começa e onde termina o dia…
sem pressa.

Os acontecimentos não nos pertencem."

(Quase uma oração, de Célia Musilli)

Foto: Marcos Mendes

terça-feira, 15 de setembro de 2009

setembrochove


A moça gente fina da loja atrasou. "Você tem outra coisa para fazer na 25 de Março? Vai demorar meia hora para separar as travessas". Sempre se arranja alguma coisa para fazer na rua 25 de Março. Ando. Eles tem cheese bread até no Mc Donald's, escreveu a Ruth Reichl, e o pão-de-queijo deles, descobri, não vai mal. O homem tentando vender a máquina papa-bolinhas-de-roupa me fez rir com som, que eu não sei se saiu de mim ou do vento que levantava o lenço improvisado circundando a camisa improvisada. Andar na 25 de Março cheia é como se movimentar no fundo do mar – só que em vez de oxigênio nas costas, você carrega uma bolsinha avelhentada na lateral. Não há precisão, somente um vidro embaçado, peixes com olhos nas costas, e sempre um quase. Os policiais e os vendedores de rua parecem sapatear em comunhão: antes de um levantar o salto, pá! O outro já completa: papapá. Os 30 minutos previstos pela moça da loja viraram 60 e, atrasada para um compromisso, preferi ficar a pé a ter de enfrentar o trânsito do Jabaquara, onde obrigatoriamente teria de despachar os produtos. "Você leva para mim, Quiel? Vou de metrô". Na estação S. Bento, a placa me diz que para chegar até a Barra Funda devo seguir sentido Jabaquara.
Quantos caminhos, José, levam ao mesmo lugar? (é o mesmo lugar?).

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

onça na anhanguera


Foto: Valter Tozetto Jr./Jornal de Jundiaí

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

o livro de zenóbia


Eu talvez seja a mulher pelada com o anel no anelar da mão direita bebendo café contra o vento. Montanhas, o pedaço de uma caminhonete azul e um sorriso encoberto. Sinto saudade do vento batendo forte no rosto, do cabelo embaraçado no fim do dia, do bambual na estrada que existe só para mostrar que as cidades podem mudar, mas alguma coisa permanece. Na hora do almoço, enquanto folheio O Livro de Zenóbia, penso na avó que eu também adotei e em como categoricamente ela sempre me presenteava com balas de leite enroladas em papel vermelho. Sinto saudade do cheiro daquele quarto que tinha na parede uma foto minha na pracinha com expressão invocada e uma mosca no chapéu branco. Mas é uma saudade com brisa, fresca como uma mordida na maçã. Sou a mulher pelada com o anel no anelar da mão direita: noiva de mim.

Foto: Ryan McGinley

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

breve ensaio sobre o vale

A gente sempre volta meio fora do ar de uma viagem. Ainda mais quando é para o mato. Como disse ontem o Waldir, "seu pai é da roça, minha filha, se não for da roça daqui, é da roça de fora. Da roça, todo mundo é". Foram nove dias percorrendo o bonito Vale do Paraíba. Aqui, um gole no licor de leite. Mais historietas depois.


Cachoeira do sertão da Bocaina


Contando carneirinhos


Menino José, que todo dia sobe o morro com leite morno e espera o caminhão do laticínio passar


Os peixes de Guararema


Família Buscapé do Bairro dos Macacos (definição do Roque)


Mercado central de São Luiz do Paraitinga


Bambual. De leste a oeste, bambu, bambu