quinta-feira, 4 de novembro de 2010
presenciando
Porque veio com uma boa reserva de paciência e alegria
deus, enquanto bosquejava, decidiu:
Não entenderá os números e nada que não se possa dobrar ou amassar.
Terá dificuldade em executar atividades básicas como recortar em linha reta ou abrir uma lata de leite condensado.
Na mesma proporção em que conseguirá sonhar, vai cismar (pois quem vive no delírio não aceita que um cacho de uva é somente um cacho de uva).
Vai ter de aprender a diferença entre sentir com a mente e sentir profundamente.
Vai, muitas vezes, se achar o pior dos demônios: "A freira de olhos baixos esperava o ônibus, sua roupa semicanônica, nem curta nem comprida, bege-e-branca, estúrdio véu na cabeça. Glória sentiu raiva da freira. Por penitência, puxou conversa com ela (...)".
Vai morrer diariamente em sonhos, filmes, beijos, silêncios, conversas e cigarros. "O que era a morte? Às vezes o corriqueiro, às vezes o absoluto terrível."
Num dia, olhando os sapatos, vai concluir que "a vida é servidão". E vai gostar ainda mais da frase porque sabe que tem algo nela que ainda não entende bem.
Noutro, porém, olhando as unhas vermelhas dos pés brotando dos novos sapatos verdes, vai concluir que a vida às vezes tem a medida exata de um abraço.
Não vai querer ser rica, não vai querer ser famosa
Vai querer apenas o que também queria Glória: "Comer comendo, namorar namorando e até mesmo colar colando, confundida ela própria com os objetos de suas ações". Em uma palavra (que no gerúndio fica ainda mais bonita): presença.
*Texto com citações de Cacos para um Vitral, de Adélia Prado.
Imagem: Betsy Walton
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