terça-feira, 27 de março de 2012

eu e você, na ilha do sol


Nós duas, a água e o vinho, as irmãs tão diferentes que nem parecem irmãs.
De repente a vida nos botou no mesmo bote e jogou para dentro d'água, dezessete anos depois. Eu, a mais velha, com a incumbência de conduzir a viagem. Era uma Ilha Grande.

Ela desembarcou do ônibus como quem vem do dentista, com calça e casaco felpudos, uma mala gigante e uma expectativa maior ainda. Olha só, nosso hotel é simples, eu disse. Tudo bem, tô acostumada, ela respondeu, fingindo que não tinha problema, mas movimentando os olhos de um jeito que eu sei que tem algum problema.
Eu soltei uma risadona nervosa
Tudo parecia dar errado, mas por isso mesmo era tão engraçado. O esmalte vermelho que respingou no lençol branco e eu com aquele discurso maternal "mas não é pra pintar as unhas em cima da cama" acabei derrubando o frasco inteiro no lençol, e depois no chão, espatifou-se e espalhou esmalte para todo lado, foi lindo. Tentativa frustrada de ser mãe e fazer as coisas certas errando mais ainda. Choramos de rir como há anos eu não fazia.
O sol ardido que me tostara durante cinco dias subitamente foi embora, e em vez de havaianas e biquínis nosso rotineiro artesanal indumentário eram capas de chuva e cangas (para cobrir a cabeça, é claro).
Ela visitou pelo menos uns 30 hotéis comigo, e às vezes suspirava "que lindo esse quarto", e eu era incapaz de aspirar profissionalismo e reprimi-la.
Irritou-se com um gerente grosseiro que mandou que voltássemos outro dia, "você não vai voltar, né?", me questionou. Expliquei que a gente ainda cruzaria outras pessoas antipáticas assim, mas era preciso deixar isso de lado porque o mais importante era fazer um bom trabalho. E foi justamente esse gerente, no fim só um carioca marrento, a primeira pessoa no mundo que olhou para nós duas e falou: "Vocês são irmãs? Têm o mesmo olhar".
Me deixou boquiaberta ao interpretar de um jeito completamente novo para mim um trecho de um dos meus poemas preferidos, Com Licença Poética, e ainda lembrar que furtei  "fundou seus próprios reinos" e usei a frase num texto em homenagem ao nonno.

Observá-la durante alguns dias, nós que há pelo menos dois anos ficamos juntas por apenas algumas horas e nunca a sós, foi como voltar oito anos no tempo e me observar. A sofrível descoberta de que nenhuma relação acaba por falta de amor e sim por outras ausências ou presenças, a impaciência diante do mau tempo, a impaciência diante de qualquer espera.
Nossas manias são as mesmas e nossas alegrias vêm do mesmo poço. Ela contando um caso no hall de entrada do hotel para nossos novos amigos era como me ouvir contando um caso. Ela comendo um improvável delicioso fetuccine ao molho branco, num restaurante que não tinha água mineral e cujo dono era um anão, e dizendo "eu adoro me sujar comendo", era como me observar comendo.
Eu a amo como amo poucas pessoas no mundo.
É um ensinamento e tanto, esse de conviver com uma fatia do que você é e do que você foi um dia.
Depois disso, melhorei algumas manias, tipo frear a afobação na hora de pedir informação na rua. E entendo quando estou impaciente e ele, o meu homem, me olha com ternura, querendo passar através de um fio invisível uma serenidade que só se conquista sozinho enrolando-se nos fios da vida que você escolheu costurar.

No penúltimo dia, o tempo continuava inzoneiro, mas vendo a carinha de resignação dela me enchi de coragem e inseri na programação a cachoeira da Feiticeira. Uma trilha inacreditavelmente íngreme e lamacenta, o que para ela, loira, linda e atlética, não era exatamente um problema. Quem caiu de bunda fui eu!
E foi ali, na Feiticeira, que invertemos os papéis. Ventava muito e ela se jogou na água fria com uma entrega bonita de ver. Se não fosse por ela, que me deu a mão como uma garantia muda de que se eu não aguentasse a força da água ela estaria ali para me segurar, eu afirmo com toda a certeza, eu não teria entrado debaixo daquela queda e tomado o melhor banho de cachoeira de que se tem notícia.




5 comentários:

Joana disse...

Lindo! Lindas! Invejinha branca, porque todo mundo diz que é um dos maiores amores do mundo!!!

Isabela Mena disse...

Tão lindo e emocionante que só percebi que tinha lido sem respirar depois do enorme suspiro invertido no fim. Ahhhh, Nana!

nana tucci disse...

Isááá. Pois como fiquei feliz que você gostou tanto assim! grandes pedaços de nós, esses irmãos, né?

thais disse...

devolvo o comentário assim: linda demais é você, nana!

manoela quintas disse...

Que lindo nana!!! Muito mesmo
Emocionou ..
Amo vcs ❤❤