quarta-feira, 4 de março de 2009

eu te amo, jaca


"Não sei direito o que é uma jaca. Um rinoceronte, um elefante que virou fruta? Em todo caso, está na cara que veio de longe, do tempo em que tudo era grande e forte e não era costume temer a morte. Tem cem anos de solidão.

A jaca contém perigos. Seu peso mata, seu cheiro pós-maduro mata, jaca com leite mata. Muita jaca mata, mesmo sem leite.

É exagerada sem ser vulgar. Se fosse vulgar, ao amadurecer, se encheria de vermelhos e rosas e alaranjados, mas não. Fica firme nas cores de monja dourada. Seria exagero dizer que a jaca usa sandálias Birkenstock?

É, acho que seria.

Coleciono livros de ingleses na Índia e sempre imagino uma inglesinha chegando à sua casa nova, de chapéu de aba, muita saia e um pote de sais para o banho na bagagem. Na varanda de bambu, alguém, para agradar, botou numa gamela trançada umas jacas de luxo.

Pronto. Mais nada é preciso. A inglesa vê, sente e entende a jaca e não há que se abalar pelos campos, templos, macacos e pintas na testa para saber o que é a Índia. Está ali, sintetizada nos gomos da fruta, dando medo e uma certa alegria desconhecida e plena. Uma inglesa que viu a jaca nunca mais será a mesma.

Não se sabe se a jaca é do bem ou do mal, do dia ou da noite. Pode ser os dois. Abre-se esplendorosa, só falta cantar, para a fome do menino e pesa como uma tonelada de náusea no luto de uma mulher.

A jaca é a orquídea das frutas e está na moda. Começou a ser vista nas feiras e supermercados quando um sábio comerciante percebeu que a realidade da jaca é excessiva. Ninguém compra uma jaca. Pode ganhar uma em ilha do litoral e ter de ir nadando com ela até o barco, pode tudo, menos comprar e levar para casa uma jaca viva.

Mesmo na feira ela não fazia bonito em manhãs claras com cheiro de pastel e garapa pelo ar, sacolas, bóbi na cabeça, não, definitivamente a jaca não orna com quase nada, a jaca combina-se com muita dificuldade.

O comerciante fez o que era preciso. Domou a bicha. Arrancou sua pele de crocodilo, tirou os caroços com delicadeza para não magoar a polpa macia e carnuda, eliminou a gosma que une os gomos e congelou-a em bandejinhas de isopor.

Toda semana, uma amiga querida quando faz seu cooper deixa uma bandejinha dessas coberta de vitafilme no meu freezer.

Confesso que é um triste espetáculo, é como ter cinzeiros de presas de elefante. Vai-se o que há de mais precioso, que é a identidade da fera. Fica o souvenir.

Mas um dos defeitos ou qualidade da jaca é a persistência teimosa. Não congela nem no freezer, por ser muito doce. Fica lá fingindo-se de domada. Podemos comê-la nesse estado, é como um sorvete delicado. E ela, sempre lá no fundo, disfarçadíssima. Se tirada da geladeira e esquecida num canto da cozinha vai retomando suas características como os bichos de filmes da meia-noite. Cheiro, cor, eflúvios mensageiros. Em breve, todos andam pela casa, atarantados sem saber de onde vem aquele zoar de mato, aquele chamado de cachoeira em dia de lua.

Pois está na moda, volto a afirmar. Um cozinheiro francês faz um purê dela muito cozidinho e põe do lado do cordeiro.

Está sendo comida glaçada, como um marron.

Da China vem seca, tostada, estralando nos dentes como pururuca.

Seca e massuda, um chiclete, vem daqui mesmo.

Verde, quando ainda não afiou seus bicos de jaca, substitui a carne vermelha.

Seus caroços, depois de passados na água fervente, são assados como castanhas.

A jaca não é uma unanimidade. Ame-a ou deixe-a."

*Ai, que delícia! Não sei direito o que é uma jaca, texto de Nina Horta publicado na Folha de S. Paulo e selecionado pelo mestre Luiz Horta para o livro O Melhor da Gastronomia e do Bem Viver

Foto: Leandro Morais

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